Uma verdade inconveniente para a pirataria

Suspensão de site que viola direitos de autor não precisa de ordem judicial

Em regra eu evito o juridiquês. Trancrições de artigos, leis e citações em latim tornam o texto enfadonho. Hoje, tirando o latim, vou ter de furar a regra. E o objetivo é me posicionar sobre tema que surge a cada operação policial de desmonte de quadrilhas de criminosos e suspensão de sites com filmes e séries piratas.

No meu artigo “De Cicarelli ao Snowden e a inconstitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet” eu relato o trauma regulatório que pauta a Internet desde 2007: a suspensão do YouTube, por 48 horas, por decisão judicial provocada pela modelo.

Esse episódio levou ao Decálogo do CGI.Br (dois anos de discussão após) que, somado à bisbilhotagem da NSA revelada em 2013, levou ao Marco Civil da Internet em 2014.

Desde então, o MCI tem sido sacralizado, o que é um grande perigo. Muitas vezes é usado como bula de remédio contra qualquer tentativa de tornar a internet mais decente no Brasil.

A verdade é que a pirataria de conteúdos é sempre vista como um não crime afinal, que mal há em assistir o novo episódio de Friends antes do lançamento da HBO Max no país? É só um filminho aqui, uma série ali. São empresas ricas, não é mesmo? Atores e atrizes milionários que certamente não serão impactados pelo meu acesso ao Popcorn Time ou Superflix. Todavia, o moço que instalou a caixinha lá em casa disse que os mais de 1000 canais são “abertos” e, portanto, a caixinha é legal! Um absurdo a polícia perder tempo com isso, com tanta corrupção, tráfico de drogas e violência! Mas, suspender um site é censura! E o acesso à cultura? E a liberdade de expressão?

Há décadas as “desculpas” são as mesmas. Mas, ok! Não tenho pretensão de convencer quem quer que seja, apenas registrar minha visão.

O sagrado MCI suporta narrativas criativas de teor fantástico e são geralmente fontes potenciais de decisões equivocadas. Criam mitos, tabus. O primeiro deles é que pirataria (odeio o termo, juro que sim, mas está na MP 2228-1/2001) depende de ordem judicial para remoção de conteúdos ou sites na internet.

Até hoje procuro e não acho onde está escrito na Lei 12.965/2014 que a suspensão de site que exiba conteúdo pirata precise de ordem judicial.

Para início de conversa, o dispositivo que aborda a responsabilidade dos provedores de aplicação sobre conteúdos de terceiros, após ordem judicial, é o art. 19 que diz:

Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.

Mas, o seu parágrafo segundo deixa claro que “A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal.”

Ao final da Lei 12.965/2014, o art. 31 estabelece que “até a entrada em vigor da lei específica prevista no §2º do art. 19, a responsabilidade do provedor de aplicações de internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, quando se tratar de infração a direitos de autor ou a direitos conexos, continuará a ser disciplinada pela legislação autoral vigente aplicável na data da entrada em vigor desta Lei.”, ou seja a Lei de Direitos Autorais de 1998.

Sendo assim, a tal ordem judicial do artigo 19 não serve e não se aplica para assuntos de violação de direitos de autor.

A resposta para esse particular está na LDA que, em seu art. 102 estabelece que “O titular cuja obra seja fraudulentamente reproduzida, divulgada ou de qualquer forma utilizada, poderá requerer a apreensão dos exemplares reproduzidos ou a suspensão da divulgação, sem prejuízo da indenização cabível.”

A LDA confere aos titulares de obras que estejam sendo reproduzidas ou divulgadas a suspensão dessa divulgação e não demanda qualquer ordem judicial para tanto. Isto é, os conteúdos protegidos divulgados, que se tornaram públicos, disponibilizados não precisam aguardar ordem judicial para serem retirados do ar ou terem sua divulgação suspensa.

O art. 105 da Lei de Direitos de Autor é o que demanda atuação judicial. Ele fala que na transmissão e na retransmissão, por qualquer meio ou processo, e a comunicação ao público de obras artísticas, literárias e científicas, de interpretações e de fonogramas, realizadas mediante violação aos direitos de seus titulares, deverão ser imediatamente suspensas ou interrompidas pela autoridade judicial competente, sem prejuízo da multa diária pelo descumprimento e das demais indenizações cabíveis, independentemente das sanções penais aplicáveis.

Transmissão e retransmissão são conceitos previstos na própria LDA que tratam da “difusão de sons ou de sons e imagens, por meio de ondas radioelétricas; sinais de satélite; fio, cabo ou outro condutor; meios óticos ou qualquer outro processo eletromagnético”.

Para a Internet, tais conceitos não se aplicam, pois os conteúdos na rede mundial são disponibilizados para acesso pelos usuários. A suspensão da divulgação do art. 102 se caracteriza logo que os conteúdos são divulgados, tornados públicos e, portanto, disponíveis.

Os meios digitais e processos eletrônicos com disponibilização de conteúdos em forma de pacotes acessíveis por terminais conectados à Internet não integram os conceitos de transmissão e/ou retransmissão da LDA. O próprio art. 19 tão festejado ao se referir a conteúdos de terceiros fala em “tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente”.

A razão é simples. A suspensão por ordem judicial para os casos de transmissão e retransmissão do artigo 105 da LDA demanda medidas presenciais como lacrar localmente os transmissores. No caso da grande rede que armazena em nuvem e em servidores, isso se materializa pela atuação remota diretamente nas URLs, IPs ou DNS.

O legislador foi sábio na expressa Judicialização no art. 105. Porém, foi ainda mais sábio ao não exigir no art. 102. O titular dos direitos pode requerer a suspensão a quem possa exercê-la, inclusive um juiz, mas não apenas. Anatel, Ancine, Ministério Público, Polícias Civis e Federal, Poder Executivo e até as empresas de telecomunicações tem legitimidade, conforme veremos a seguir.

Se no Marco Civil da Internet identificamos a suspensão de sites ou aplicações é no art. 12. Diz esse artigo que, sem prejuízo das demais sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, entre outras, a “suspensão temporária das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11”.

Mas que atos seriam esses? Bom, segundo o art. 11 “Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros.”

Os arts. 11 e 12 tratam da suspensão e até interrupção de atividades por provedores de aplicação e conexão que estejam em desacordo com legislação brasileira. Violar direitos de autor é estar em total desacordo com o ordenamento jurídico! Pior, o uso das tais caixinhas que não são homologadas pela Anatel e vendidas aos montes são instaladas nas casas e redes domésticas dos domicílios expondo a privacidade e os dados das pessoas e de longe não estão em conformidade com a LGPD.

Tais comunicações por provedores de aplicação não se limitam a mensagens instantâneas ou de perfis em redes sociais, pois são tratadas no artigo 11 como “comunicações privadas”. Essas atividades de comunicação são as que levam informação e conteúdo a exemplo do audiovisual. Ou seja, o desrespeito ao art. 11 pela violação de direitos de autor, a legislação brasileira e as comunicações, assim como a ação fraudulenta do art. 102 da LDA justificam a suspensão e sem ordem judicial.

Aliás, pela LDA “audiovisual é a atividade que resulta da fixação de imagens com ou sem som, que tenha a finalidade de criar, por meio de sua reprodução, a impressão de movimento, independentemente dos processos de sua captação, do suporte usado inicial ou posteriormente para fixá-lo, bem como dos meios utilizados para sua veiculação;”, conceito idêntico ao da Lei da Comunicação Audiovisual de Acesso Condicionado, o SeAC tão vilipendiado pela pirataria.

Lembremos que o MCI fala em sanção administrativa no art. 12!

Para chegar nela, não podemos deixar de lado o grande tema dos tempos de discussão do MCI: net neutrality.

A neutralidade de rede do art. 9º é um mandamento a ser cumprido, segundo a Lei, pelo responsável pela transmissão, comutação ou roteamento que na prática são as empresas provedoras de conexão ou prestadoras de telecomunicações. Não se aplicam aos provedores de aplicação, aos usuários e nem ao Poder Público.

Além do dispositivo não falar de qualquer ordem judicial, a neutralidade de rede não é dever do Estado, mas das Teles e em matéria de isonomia. Ou seja, as redes de telecom por vontade própria e em desrespeito à isonomia e à lei não podem degradar o tráfego dos pacotes de informação, salvo nos casos do Decreto 8.771/2016, tão falado nos tempos atuais.

Não há menção a ordem judicial em qualquer parte do instituto da neutralidade da rede.

Na minha opinião, não só podem como deveriam as redes de telecom atuar ativamente no bloqueio em suas redes de endereçamento eletrônicos conteúdos piratas, sem que isso possa configurar qualquer violação à neutralidade. Isso porque o Regulamento dos Serviços de Telecomunicações da Anatel reza em seu art. 65-M que “As prestadoras devem adotar as medidas técnicas e administrativas necessárias e disponíveis para prevenir e cessar a ocorrência de fraudesrelacionadas à prestação do serviço e ao uso das redes de telecomunicações, bem como para reverter ou mitigar os efeitos destas ocorrências.”

A reprodução indevida de conteúdos é ação fraudulenta como já nos mostrou o art. 102 da LDA e ocorre usurpando serviços de telecomunicações como o SeAC e as próprias redes que são corroídas por caixinhas do tipo TV Box que servem como máquinas zumbis nas casas das pessoas, violando seus dados, sigilos e privacidade tão caras ao MCI. Muitas ainda mineram criptos terceirizando o consumo de energia elétrica e ainda atuam de forma coordenada para suportar ataques a outros cibercrimes em terminais que não tem antivírus e firewall. Existem casos de pequenos provedores conectados à rede de acesso e que atuam nas franjas em que a maioria esmagadora da capacidade é ocupada pelo tráfego de conteúdos pirateados.

As teles para conter os spams que faziam dos computadores brasileiros de máquinas zumbis (hoje são as tv boxes), adotaram com suporte da Anatel e do CGI.br a gerência da Porta 25. O Decreto 8.771/2016, inclusive, fala de “restrição ao envio de mensagens em massa”. Spam é conteúdo também e a maioria aliás não carrega arquivos maliciosos ou faz phishing scam. Ninguém jamais reivindicou a liberdade de expressão dos spammers. Claro, spam ninguém gosta, conteúdo “de graça” é outra conversa!!

O direito de autor está previsto na CR/88. Os românticos defendem que o acesso à conteúdos piratas e sua disponibilidade são parte da liberdade de expressão. Mas não podemos enxergar o mundo assim. Desinformação e discurso de ódio, “são tão” liberdade de expressão quanto contrafação de direitos de autor. Ou melhor, não são!

Não podemos relativizar condutas apenas por gosto próprio, só porque é legal ver aquele jogo ou luta de MMA.

O MCI determina ordem judicial apenas nos seguintes casos: violação de sigilo e fluxo de suas comunicações; inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas e indisponibilidade de conteúdos de terceiros, excetuados o direito de autor ou conteúdos íntimos como pornografia de vingança. No caso débito, é possível a suspensão de conta de internet por provedor de conexão. No caso de violação do art. 11 a suspensão deve ser implementada e também não depende de caneta de juiz.

Não há nem no MCI e nem na LDA NENHUMA NECESSIDADE DE ORDEM JUDICIAL PARA SUSPENSÃO DE SITES, APPS, URLs ou DNS que se prestem à disponibilidade de conteúdos pirateados.

O que precisamos é festejar e institucionalizar as Operações 404 criando um ambiente permanente de combate ao crime. Isso sem falar que os crimes em flagrante delito devem ser interrompidos, inclusive crimes continuados que deixam 24/7 conteúdos disponíveis para acesso ilícito.

A Anatel como guardiã da rede tem poder de polícia, a Ancine que por competência legal o “combate à pirataria do audiovisual” igualmente. São Agências de excelência. Deveriam sim se unir em regulamento conjunto para promover processo permanente e dinâmico de suspensão administrativa de sites que desrespeitam à legislação brasileira à luz do dia e do backlight de telas.

A pirataria romântica dos camelôs de esquina não se igualam aos modelos de hoje. Se existem organizações exponenciais baseadas na abundância de ativos como a Netflix, existem as organizações criminosas exponenciais baseada na mesma abundância dos mesmos ativos. O que não podemos mais é achar que o dinheiro escuso fruto dessas atividades começa e acaba nos sites de filmes e séries piratas.

Empresas como Google, Facebook ou XVideos investem em tecnologias e processos para que titulares reivindiquem seus direitos e servem de bons exemplos. Até por isso não podem ser nivelados nas proteções do MCI com agentes do crime. Milhares de conteúdos que ferem direitos de autor são removidos do YouTube todo dia através do Content ID sem nenhuma ordem judicial. Se o provedor de aplicação adota a suspensão de canais com conteúdos ilegais, por que não poderia o Poder Publico através de suas polícias e agencias de Estado?

A ironia do destino é que o trauma Cicarelli que alvejou equivocadamente o YouTube no Brasil vem a calhar para que Internet suporte modelos de negócios de crimes silenciosos. Lembremos que IP é Internet Protocol, não deixemos que seja sigla para ImPunidade.

Artigo de Marcelo Bechara no portal Migalhas

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Artigos relacionados

Digite acima o seu termo de pesquisa e prima Enter para pesquisar. Prima ESC para cancelar.

Voltar ao topo