A evolução cada vez mais acelerada da Economia Digital, com a imposição para que todos, especialmente as indústrias tradicionais, se adequem aos tempos atuais, traz consigo mais um dos muitos dilemas de um processo de transformação: quem é o meu concorrente?
Declarações recentes de CEOs de grandes empresas nativas ou sobreviventes da nova economia colocaram o tema sobre a mesa.
Aqui no Brasil, Octávio de Lazari, do Bradesco, afirmou que não tem medo das fintechs, mas das big techs como Amazon, Facebook, Apple e Google. “Imagine um desses entrando no mercado e, com os milhões de clientes que essas casas têm, acessando os sistemas dos bancos? O sistema trava. Não há tecnologia que suporte”. Em verdade, o medo dele vai além da trava sistêmica. As big techs, as empresas de delivery e os market places têm desenvolvido meios de pagamento próprios, alguns com cartão de crédito como Apple. Outras como o Facebook até pensam em uma nova moeda virtual a exemplo da polêmica Libra e da carteira Calibra.
Já o Diretor de RH da Arcos Dourados do Grupo McDonald’s, Marcelo Nóbrega, discorda de quem pensa que o Burger King é o grande competidor da franquia que virou sinônimo de fast food. “O maior concorrente do Mc hoje em dia é o iFood. Você̂ pede de onde quiser, qualquer tipo de comida, em todas faixas de preço, e eles entregam rápido. E eles hoje já́ são quase do mesmo tamanho do McDonald’s do Brasil”, disse Nóbrega. O iFood, por sua vez também enxerga concorrência para além do UberEats ou do Rappi em um dos equipamentos mais antigos das casas dos clientes. “Nosso maior concorrente é o fogão. Pessoas cozinhando em vez de comprar no iFood”, afirmou o CEO Moyses, executivo do unicórnio brasileiro.
A Netflix que há pouco tempo surfava sozinha no mundo do streaming de filmes e séries, em carta endereçada aos acionistas, escreveu um dos mais explícitos reconhecimentos do Mercado de Atenção: “Nós ganhamos em tempo de tela, tanto dos celulares quanto televisão, junto com um grupo bem amplo de competidores. Nós disputamos com (e perdemos para) Fortnite mais do que para a HBO”. Fortnite é maior game do mundo com 200 milhões de usuários.
A competição transversal não é uma novidade em si, afinal, não é de hoje que farmácias competem com supermercados. Contudo, o que ocorre no momento é bem maior e mais complexo do que venda em canais de varejo totalmente distintos. Os processos de disrupção, cada vez mais curtos, em que o tiro que alveja o negócio vem de onde não se espera, é o desafio. Alguns chegam a classificá-la como concorrência exponencial a depender da disrupção no mercado.
O saudoso professor Clayton Christensen, da Harvard Business School e mentor da chamada teoria da Inovação Disruptiva, define disrupção como um fenômeno pelo qual uma inovação transforma um mercado ou setor existente ao introduzir simplicidade, conveniência, acessibilidade e viabilidade financeira em cenários em que a complexidade e o alto custo tornaram-se status quo – e redefine completamente o setor mudando significativamente a experiência das pessoas. A concorrência pode ser transversal, mas o consumidor é único, assim como seus dados pessoais.
Ocorre que, a depender da agressividade competitiva, grupos passam a atuar em muitos mercados sem que isso chame atenção das autoridades antitruste, afinal, qual o problema de uma empresa como a Alphabet, detentora da maior ferramenta de busca, atuar também na distribuição de vídeos, música, plataforma para smartphones e TVs, no comércio eletrônico, viagens ou na geolocalização para mobilidade urbana? Evidentemente, a diversificação não é por acaso. A Amazon que o diga. São pelo menos 40 subsidiárias que atuam nos mercados de comércio eletrônico, livros, música, vídeos, alimentos, computação em nuvem, assistente virtual, equipamentos, defesa, aeroespacial, entre outros.
Concentração horizontal (concorrentes diretos) e vertical (entre agentes que atuam em diferentes níveis da cadeia produtiva no mesmo mercado)
Se existe concentração horizontal (concorrentes diretos) e vertical (entre agentes que atuam em diferentes níveis da cadeia produtiva no mesmo mercado), está mais do que na hora de avaliarmos a concentração transversal. Na verdade, a doutrina especializada define-a como “concentração conglomerada”, por meio de fusões e aquisições entre empresas cujos serviços e os produtos não têm relação nem de concorrência ou mesmo de complementaridade e, por isso, quase sempre passam despercebidos pelas autoridades antitrustes e regulatórias.
A concentração passa a ser repulsiva quando causa a eliminação da concorrência, mesmo que potencial, ou ainda quando domina o mercado, afetando sobretudo empresas que não participam do conglomerado. Veja que o que antes era pouco percebido está ficando evidente no mundo das big techs. E mesmo que a concentração com eliminação da concorrência não resulte no aumento de preços, até porque a “gratuidade” é comum na internet, o olhar deve se voltar na coleta e no processamento dos dados, a moeda mais valiosa e relevante da economia digital. Inteligência Artificial e Machine Learning sobre Big Data são os elos que permitem ao grupo conglomerado reger a orquestra de dados em negócios aparentemente desconexos. Voltando ao caso do iFood lançou Loop, um serviço a preço imbatível sem frete em que concorre diretamente com os próprios restaurantes usando os dados coletados de seus clientes que dependem muito da plataforma. E para competir com o fogão promete venda de insumos para chefs caseiros e churrasqueiros de plantão, inclusive expandido sua plataforma para supermercados. Assim, seguem a política que a Amazon pratica há anos.
A verdade é que, grandes empresas de tecnologia se comportam como nações em si, até porque algumas têm em suas bases de dados mais clientes do que o mais populoso dos países, e fazem da algoritmocracia sua lei. Mas isso pode e deve mudar. Com a manifestação de interesse da Alphabet na empresa de healthtech FitBit, o cenário aponta para análises mais criteriosas. Todo M&A oriundo de uma grande empresa passa a ser bem relevante sob a ótica da concentração conglomerada, especialmente se o negócio é a plataforma. Por isso, uma questão que deve interessar para o ambiente competitivo é distinguir um grande player tecnológico de uma plataforma.
A importância da plataforma
A plataforma, mais do que uma tecnologia, é um modelo de negócios e já são os dominantes no mundo. Uma plataforma é um modelo de negócios que cria valor, facilitando trocas entre dois ou mais grupos interdependentes, geralmente consumidores e produtores. Apple, Google, Facebook, Uber e Alibaba permitem que consumidores e produtores se conectem, facilitando a troca de bens, serviços e informações e criam seus próprios mercados gerando valor, reduzindo os custos de transação, permitindo a inovação externalizada.
São empresas que não criam e controlam diretamente o inventário por meio de uma cadeia de suprimentos da mesma forma que as empresas lineares. Plataformas não são meros aplicativos ou websites. É um mecanismo tecnológico que gera valor ao juntar consumidores e produtores. As empresas de plataforma não possuem os meios de produção. Elas criam os meios de conexão.
É a conexão que faz com que plataformas escalem de maneira exponencial, o que as empresas tradicionais em regra não conseguem. Empresas tradicionais, sem plataforma, são conhecidas pela cadeia linear típica, criando valor na forma de bens ou serviços. Negócios lineares possuem seu inventário e ele aparece em seus balanços, seja um fabricante de automóveis como a Tesla ou um provedor streaming como a Netflix, que paga ou licencia todo o seu conteúdo.
Embora seja uma empresa exponencial, a Netflix é um negócio linear e não um negócio de plataforma. Pelo menos, por enquanto. Já o YouTube é parte de uma grande plataforma que conecta criadores de conteúdo com usuários que também produzem seus conteúdos. O foco da plataforma é o crescimento da rede. E para isso startups vão sendo adquiridas em estágios iniciais antes mesmo da inovação ser difundida eliminando potencial competição.
Conceitos do século passado em matéria de concorrência estão em xeque com os imensos conglomerados tecnológicos de hoje. Mas algumas questões são levantadas: É plataforma, está na economia de dados e atua em negócios transversais? A resposta não é outra senão que o modelo de negócios é a própria concentração de dados! E isso por si só deve promover medidas que busquem o equilíbrio do mercado.
Segundo preceitua a Teoria da Relatividade Geral de Einstein um buraco negro é uma região do espaço da qual nada, nem mesmo a luz escapa em razão de seu imenso campo gravitacional. É um sistema que suga tudo à sua volta, assim como as grandes plataformas fazem com os negócios e os dados. Por sorte, outro gênio da ciência, Stephen Hawking, afirmou, antes de morrer, que era possível escapar de buracos negros.
Em 2019 a Nike anunciou a retirada de todos os seus produtos da Amazon. O mercado enxergou como o começo de um movimento que deve ser seguido por outros gigantes que tem seus produtos concorrendo com os da própria Amazon que são sempre mais baratos.
Os processos de transformação digital devem buscar mapear a competição, não apenas em players óbvios, mas naqueles improváveis. Em se tratando de buracos negros digitais, a pergunta passa ser ainda maior: qual plataforma pode me engolir?