A história da regulação da internet do Brasil, apesar de nova, tem momentos marcantes. Um desses episódios ocorreu em Tarifa, na Espanha, que tem como atração turística a observação de baleias e golfinhos na bela costa do país ibérico. Contudo, a observação por milhões de internautas de um vídeo intimo específico registrado em uma de suas praias foi determinante para o debate sobre conteúdos na web brasileira: o caso da modelo Daniella Cicarelli X Youtube1. Ali, em decisão desproporcional toda a plataforma de disponibilização de vídeos foi tornada inacessível no país por 48 horas em razão do pedido para remoção do conteúdo sexual envolvendo a modelo no mar da Andaluzia.
O Comitê Gestor da Internet no Brasil – CGI.br, entidade criada ainda em 1995 para auxiliar o desenvolvimento da internet no país e que atuou como amicus curiae no caso da modelo junto ao Supremo Tribunal federal – STF, iniciou em seguida um importante debate que culminou no Decálogo de Princípios CGI.br/Res/2009/03/P que até hoje norteiam a governança da internet no Brasil. Isso não sem atravessar intensos dois anos de discussões entre 2007 e 2009.
A Lei 12.965 de, 23 de abril de 2014 ou Marco Civil da Internet2 – MCI é publicada 7 anos após o caso Cicarelli, mas com um legado de debates que se iniciaram em anos anteriores através do Projeto de Lei 84/99, de autoria do então deputado, o advogado pernambucano LUIZ PIAUHYLINO. O que motivou o primeiro impulso do MCI foi a contrariedade à proposta de relatoria do então Senador e depois Deputado Federal por Minas Gerais EDUARDO AZEREDO que insistia na responsabilização dos provedores de acesso, bem como na necessidade de autenticação por meio de chave criptográfica para usuários comuns navegarem na internet. À época os bancos perdiam ações na justiça quando as contas de seus clientes eram invadidas em tempos de muito spam (pré gestão da Porta 25)3, phishing scam e pouco uso de antivírus e firewalls pelos internautas brasileiros, razão pela qual os bancos queriam naquela lei de crimes informáticos ser eximidos de quaisquer responsabilidades. Muito criticado, foi logo apelidado de AI-5 digital.
Vários especialistas em internet se manifestaram. Foram diversas reuniões no Congresso Nacional e de confronto de ideias com o então Senador4 até que seu projeto que estava pronto para ser votado em novembro de 2006 na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) Senado fosse retirado de pauta, o que acabou sendo feito após evento na Câmara dos Deputados na véspera da votação e que gerou repercussão na grande midia: “Projeto de controle da internet vai contra inclusão digital5” foi a manchete à época.
No ano seguinte, o advogado RONALDO LEMOS, escreveu artigo6 que defendia a necessidade de um marco regulatório civil. O governo Lula após intensa atuação da sociedade civil deu ao Ministério da Justiça (onde os direitos humanos eram tratados) a incumbência de criar um “marco civil” ou carta de princípios para a defesa das liberdades dos cidadãos na internet, que já se debatia desde 2007, ano do polêmico vídeo.
Começou na Câmara dos Deputados como o PL 2126/2011 as discussões. Entretanto, foram as revelações do analista de sistemas, ex-administrador de sistemas da CIA e ex-contratado da NSA, Eduard Snowden, em 2013 somadas as Manifestações de Junho (ou Jornadas de Junho) daquele mesmo ano que aceleraram a tramitação do MCI. A então presidente Dilma Rousseff encontrou na pauta da internet uma resposta política às marchas de 2013 orquestradas nas mídias sociais e a vigilância da NSA – National Security Agency.
No dia 16 de setembro 2013 a então Presidente da República convocou reunião específica com o CGI.br. A partir daquela interlocução, a ex-Presidente usou parte do Decálogo no tradicional discurso7 de abertura por um chefe de Estado brasileiro na Organização das Nações Unidas em novembro8. Esse gesto alçaria o CGI.br definitivamente a um ator político para além de um competente corpo técnico/acadêmico. Disso, no IGF – Internet Governance Forum ao final de 2013, na Indonésia, frente a um mundo ainda perplexo com as revelações de SNOWDEN, o Brasil assume a liderança global dos debates da internet e convida para o Net Mundial9 evento que aconteceu em 23 e 24 de abril de 2014, em São Paulo onde foi assinado diante de um público entusiasmado o Marco Civil da Internet. No Senado, desde 26 de março de 2014, o projeto sob o número PLC 21 de 2014 com foi objeto de uma tramitação meteórica (um mês) justamente para dar tempo de ser assinado naquele evento.
O MCI é uma lei de fato importante que reafirma valores constitucionais, consolida conceitos, trata de guarda de registros, neutralidade de rede, atuação do poder público, privacidade e a remoção de conteúdos na internet, no seu art. 19, hoje objeto de questionamento no Supremo Tribunal Federal – STF quanto à sua constitucionalidade10. A discussão que se coloca na Suprema Corte tem relação com a constitucionalidade da imposição de “necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros”.
Segundo os defensores do art. 19 do Marco Civil da Internet o dispositivo foi essencial para que acabasse no Brasil uma prática recorrente pela qual provedores, a partir de praticamente qualquer denúncia contra algum conteúdo, tirassem-no do ar pela falta de regulação adequada que lhes desse segurança jurídica sobre qual informação estaria ou não de acordo com a ordem legal.
Diz o seu caput: “Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.” A história nos mostra que há uma dose de desonestidade intelectual nesse debate.
Ao contrário do que sugere, o art. 19 do MCI surge como um anteparo não à liberdade de expressão dos usuários, mas como um escudo legal para os provedores de aplicação. A própria técnica legislativa é questionável e reveladora do dispositivo ao iniciar o texto “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura”. Mandamentos legais que já começam se explicando têm algo bastante errado. Até porque a liberdade de expressão é um dos princípios que norteiam toda a lei previsto no inciso I do art. 3º. Alias, nem precisaria, haja vista que estamos falando de uma valor consagrado como clausula pétrea constitucional.
O texto do dispositivo não é sobre a liberdade de expressão. Nunca foi. Tanto é assim, que o dispositivo se refere à responsabilidade civil dos provedores de aplicação e com foco na remoção de conteúdos (tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente) exatamente como no caso da modelo Daniela Cicarelli, mas que pela natureza íntima e repercussão midiática recebeu na mesma lei tratamento privilegiado em artigo diverso, o que abordaremos oportunamente.
O item 7 do Decálogo do CGI.br11, usado como sustentáculo do art. 19 do MCI é deturpado na defesa dos provedores de aplicação. O princípio fala da inimputabilidade da rede: “7. O combate a ilícitos na rede deve atingir os responsáveis finais e não os meios de acesso e transporte, sempre preservando os princípios maiores de defesa da liberdade, da privacidade e do respeito aos direitos humanos”.
O 7º mandamento é claro ao preservar os meios de ACESSO e TRANSPORTES, ou seja, as REDES, visando a inimputabilidade da rede de telecomunicações e não dos provedores de aplicação. Esses são Serviço de Valor Acionado – SVA, portanto, usuários da rede e não a própria, conforme reza o art. 61 da LGT que antecede o Decálogo. Na própria composição do CGI.br há duas cadeiras específicas para os “Provedores de Acesso e Conteúdo”. Quem provê o acesso é provedor de conexão e a não o de aplicação; e os Provedores de Infraestrutura de Telecomunicações são os responsáveis pela rede para o acesso e o transporte de dados. Essa infraestrutura crítica que o mandamento 7 do Decálogo visa preservar. Esse conceito de rede é histórico desde a Norma 04/1995.12, pedra fundamental da regulação da internet no Brasil. Em fevereiro de 2008 foi publicada a Portaria nº 2 do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República,13 a qual definiu, em seu artigo 2º, infraestrutura crítica como sendo “as instalações, serviços e bens que, se forem interrompidosou destruídos, provocarão sério impacto social, econômico, político, internacional ou à segurança nacional”.
Entre elas, telecomunicações.
O que se busca preservar é a estabilidade e o funcionamento da rede e do fluxo de informações e, no máximo, evitar que serviços inteiros sejam interrompidos ou bloqueados na REDE prejudicando o acesso e esse fluxo. Repete-se, o exemplo de interromper o funcionamento da plataforma YouTube no território nacional em razão de um único conteúdo, até porque esse tipo de medida/bloqueio se materializa na camada da REDE.
Por isso, decisões judiciais que vieram a ser tomadas nesse sentido, bem como as que alcançaram posteriormente o Whatsapp promoveram determinações de interrupção de acesso e transporte às empresas de telecomunicações do país para seu cumprimento. A gestão se materializa na interrupção do acesso, aí sim imputando a rede o ônus de ilícitos. Até por isso o bloqueio da aplicação de mensagens instantâneas também é objeto de ação no STF em outro processo. Relatado pela Ministra ROSA WEBER, a decisão da Corte deverá esclarecer se a Justiça pode impedir o funcionamento temporário do aplicativo devido à recusa de entrega de informações de usuários investigados por diversos crimes.
A convocação equivocada do item 7 do Decálogo não pode assim como no art. 19 do MCI servir de salvo conduto ou escudo para violação em aplicações dos direitos humanos defendidos pelo mesmo item 7 do Decálogo e o seu primeiro mandamento: “1. O uso da Internet deve guiar-se pelos princípios de liberdade de expressão, de privacidade do indivíduo e de respeito aos direitos humanos, reconhecendo-os como fundamentais para a preservação de uma sociedade justa e democrática.”
Para incrementar, tantos os direitos de autor (§ 2º do art. 19 do MC14I), bem como o 2115 da mesma lei independem de ordem judicial para que a RESPONSABILIDADE surja. Isso porque para o direito de autor (art. 5º, XXVII da CR/88), bem como para preservação da intimidade (art. 5º, X da CR/88) não há corretamente qualquer necessidade de ordem judicial para caracterização da responsabilidade sobre os conteúdos nos provedores de aplicação.
Alias, a leitura do inciso X é pedagógica: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Pelo MCI valores que residem na mesma clausula pétrea do mesmo inciso tem tratamentos totalmente distintos, em nome da “liberdade de expressão”. À época das discussões, para além do episódio na Espanha, o revenge porn ou a exposição de fotos intimas de nudez e sexo ganharam a opinião pública, o que fez com que a lei de crimes informáticos16 fosse publicada no dia da Lei Carolina Dieckmann17 18, famosa atriz vítima dessa violação.
O então relator do MCI, o Deputado Federal fluminense ALESSANDRO MOLON, afirmou em seu Parecer19, que: “O atual artigo 19 (antigo artigo 14) consagra o princípio da inimputabilidade da rede, ao dispor que o provedor de conexão à Internet não será responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros.Tal medida visa a proteger os diversos intermediários responsáveis apenas pela transmissão e roteamento de conteúdos, reconhecendo que a responsabilidade por eventuais infrações por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros cabe àqueles que as cometeram, e não àqueles que mantém a infraestrutura necessária para o trânsito de informações na Internet. Ao se estabelecerem garantias contra a indevida responsabilização de intermediários na Internet, protege-se, igualmente, o potencial de inovação na rede. Acrescentamos apenas a menção de que a isenção de responsabilidade por danos tem caráter civil, uma vez que o projeto de lei tem por objetivo regulamentar os aspectos de direito civil relativos à Internet.”
Nesse trecho, MOLON deixa claro que o principio da inimputabilidade da rede é sim para os provedores de conexão, empresas de telecomunicações de grande porte ou pequenos provedores de acesso à internet, detentores da rede de transporte e não para salvaguardar os provedores de aplicação.
Sobre o que viria a ser o atual artigo 19 DO MCI o relator afirmou: “Fim da Censura Privada: responsabilidade civil por danos gerados por terceirosCom relação ao atual artigo 20 (antigo artigo 15), mantivemos a regra geral de isenção de responsabilidade do provedor de aplicações, com a exceção que permite a responsabilização em caso de descumprimento de ordem judicial específica de retirada de conteúdo gerado por terceiros, bem como a ressalva a eventuais disposições legais em contrário, como nos casos que cuidam da remoção de conteúdo relativos a pornografia infantil, os quais devem ser removidos conforme lei específica, ou seja, mediante mera notificação oficial, conforme disposto no artigo 241-A do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8069/1990). Após notificação oficial, o conteúdo contendo cenas de sexo explícito ou pornografia envolvendo criança ou adolescente deve ser imediatamente indisponibilizado pelo provedor de aplicações.Mantivemos, igualmente, a determinação de que tal ordem judicial deva identificar clara e especificamente o conteúdo apontado como infringente, com o objetivo de evitar decisões judiciais genéricas que possam ter efeito prejudicial à liberdade de expressão, como, por exemplo, o bloqueio de um serviço inteiro – e não apenas do conteúdo infringente. Evita-se, assim, que um blog, ou um portal de notícias, seja completamente indisponibilizado por conta de um comentário em uma postagem, por exemplo. Evitam-se também ordens genéricas de supressão de conteúdo, com a obrigação de que a ordem judicial indique de forma clara e específica o conteúdo apontado como infringente, de forma a permitir a localização inequívoca do material – ou seja, há a necessidade de se indicar o hyperlink específico relacionado ao material considerado infringente. Nesse aspecto, fizemos ainda constar expressamente do início do dispositivo que esta salvaguarda tem o intuito de assegurar a liberdade de expressão e de impedir a censura, explicitando a preocupação da manutenção da Internet como um espaço de livre e plena expressão. Também enfatizamos que a responsabilidade de que trata o caput do artigo tem natureza civil. Ademais, acrescentamos o §2º ao atual artigo 20 (antigo artigo 15) de modo a explicitar que o disposto no artigo não se aplica a eventuais infrações a direitos de autor ou a direitos conexos. Desde o início da tramitação do projeto na Câmara, ficou claro que os direitos autorais ficariam de fora do Marco Civil da Internet, já que a reforma da lei de direitos autorais está em fase final junto ao Governo e, portanto, não devemos atropelar o processo público de consultas ao longo dos últimos anos. No entanto, ao não se tratar explicitamente de direitos autorais no projeto, cresceu a preocupação de alguns setores que alegaram que tal omissão levaria à exigência de ordem judicial para a retirada de qualquer conteúdo que violasse os direitos autorais – o que significaria um tratamento antecipado ao tema, antes da reforma da lei de direitos autorais. Para deixar claro que o Marco Civil não trata de direitos autorais, foi incluída nova versão do parágrafo 2º no atual artigo 20 (antigo artigo 15), atendendo-se consensualmente aos legítimos interesses dos setores envolvidos, incluindo o setor privado, sociedade civil e o governo. Incluímos expressamente o dever de respeitar a liberdade de expressão e a Constituição Federal, bem como remetemos a aplicabilidade do dispositivo à Lei de Direitos Autorais, que está em fase de reforma na Casa Civil. Dessa forma, atende-se ao pedido do Ministério da Cultura de que o debate sobre direitos autorais na Internet seja feito no âmbito da discussão da Reforma da Lei de Direitos Autorais, que a Casa Civil da Presidência da República enviará ao Congresso, após longos e amplos debates públicos com a sociedade. Ademais, para dirimir dúvidas, incluímos dispositivo nas Disposições Finais do Marco Civil da Internet, de modo a deixar claro que até a entrada em vigor na nova lei especial (a nova lei de direitos autorais),as regras da atual lei de direitos autorais são aplicadas aos casos envolvendo direitos autorais. Ou seja, mantém-se o status quo.”
Interessante observar que a justificativa para a necessidade da ordem judicial é no sentido de, repete-se, “evitar decisões judiciais genéricas que possam ter efeito prejudicial à liberdade de expressão, como, por exemplo, o bloqueio de um serviço inteiro – e não apenas do conteúdo infringente”. Ou seja, o receio de se bloquear todo um serviço em razão de um único conteúdo, o que aconteceu no já mencionado caso da modelo Daniela Cicarelli. A liberdade de expressão que se quer preservar é a de evitar que ao ser interrompido todo um serviço, os usuários sejam cerceados de se expressar através da plataforma interrompida! E de fato, assim ALESSANDRO MOLON explica que esta salvaguarda tem o intuito de assegurar a liberdade de expressão e de impedir a censura, explicitando a preocupação da manutenção da Internetcomo um espaço de livre e plena expressão,ou seja, mantendo o funcionamento dos provedores de aplicação. O FOCO NÃO É O CONTEÚDO EM SI, O QUE SE PUBLICA NA PLATAFORMA, MAS O DIREITO DE SE PUBLICAR. O ART. 19 DO MCI FOI FEITO PARA EVITAR O BLOQUEIO DOS SERVIÇOS POR CONTEÚDOS DE TERCEIROS E NÃO SER UM SALVO-CONDUTO AOS PROVEDORES DE APLICAÇÃO!!!Sobre direitos autorais, resta claro que o MCI não alcança esse ambiente.
Por fim, o Deputado MOLON aborda a situação específica do revenge porn que à época mereceu tratamento especial, haja vista fatos públicos recorrentes de vitimas mulheres, muitas adolescentes, que chegaram ao ato extremo de tirar a própria vida em razão da exposição criminosa de sua intimidade: “Indisponibilização de Cenas de Nudez ou Atos SexuaisTendo em vista os recentes fatos tristes envolvendo o suicídio de jovens moças que tiveram imagens suas de cenas privadas de atos sexuais indevidamente divulgadas na Internet ou em aplicativos utilizados na Internet, entendemos ser urgente a inclusão do novo artigo 22, para que o provedor de aplicações de Internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros seja responsabilizado subsidiariamente pela divulgação de imagens, vídeos ou outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado sem autorização de seus participantes quando, após o recebimento de notificação pelo ofendido ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo. Cumpre ressaltar que, conforme disposto no parágrafo único do novo artigo 22, a notificação deverá conter elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador de direitos da vítima, tal como o link para a página na Internet na qual o material foi disponibilizado. O antigo artigo 17 foi renumerado para artigo 23. O antigo 18, para atual artigo 24. Seus conteúdos não foram modificados.”
O legislador acertadamente entendeu a gravidade e teve sensibilidade do problema da exposição da nudez e cenas de sexo e o impacto que isso gera nas vitimas e suas famílias. A atriz Carolina Dieckmann e Cicarelli são exemplos de vitimas famosas. Outras tantas anônimas sofreram e ainda sofrem. Mas, e se à época viessem a publico durante os debates do MCI os casos de racismo, como viriam acontecer depois, com pessoas famosas ou não, a exemplo da adorável TITI, filha dos atores BRUNO GAGLIASSO e GIOVANNA EWBANK20 ou da competente jornalista MAJU COUTINHO21? Necessitaria a manifestação de injuria racial ou racismo de ordem judicial específica para gerar responsabilidade civil aos meios de divulgação e distribuição dos conteúdos por aplicações, como acontece hoje?
Na prática, significa que é mais “vantajoso” do ponto do reconhecimento jurídico e do Direito ter uma imagem de nudez exposta na internet nos termos do art. 21 do MCI ou uma fotografia publicada sem a devida menção de seu autor não alcançado pelo art. 19 do que ser vítima de ódio, crimes contra a honra, ataques racistas, homofóbicos ou por origem e religião.
Enquanto nos primeiros casos, basta notificar as plataformas para a responsabilidade emergir, nos demais é preciso buscar o Poder Judiciário com os custos de dinheiro e tempo que isso demanda, inclusive advogados especializados em direito digital e elaboração de Atas Notariais junto aos Cartórios responsáveis para validação da prova imaterial, mesmo que a tramitação seja em juizados especiais, o que não tem sido a regra. Até decisão favorável (se favorável), aquele conteúdo nocivo é rentabilizado servindo a mentira, o ódio e a ofensa como modelo de negócio acobertado sob o manto de combate à censura de um artigo que tem por finalidade que a remoção de conteúdo não comprometa todo o serviço.
Para o constitucionalista GUSTAVO BINENBOJM22, “A decisão judicial que reconheça a violação e condene o infrator ao ressarcimento deverá contemplar esse comportamento do provedor pelo menos desde a notificação, sob pena de violação à regra da indenização integral do dano, prevista no artigo 5o, incisos V e X, da Constituição. Levar a Constituição a sério importa reconhecer a inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet.”
Na mesma linha, o especialista em comunicação social CRISTIANO FLORES23 sentencia: “Como é possível que alguém que aufere lucros com a divulgação de um conteúdo que sabe ser potencialmente ofensivo a terceiros (porque foi notificado pelo ofendido) não seja responsável pelos danos que provocar? Chamar tal responsabilização de censura é o mesmo que dizer que são censores todos os veículos de comunicação que decidem não divulgar informações que violem direitos.”
Em recente artigo no Tilt, do Uol24, o advogado e professor Carlos Affonso do ITS – Instituto de Tecnologia e Sociedadeao explicar as diferentes iniciativas no Brasil e EUA, afirma que “O artigo 19 do Marco Civil da Internet não é a Section 230 do Communications Decency Act americano, que está sob ataque do Presidente Trump. A imunidade que existe aqui para provedores é sobre o conteúdo postado por terceiros (geralmente seus usuários), mas não sobre a sua remoção e atividades das empresas na moderação de conteúdo. (…) Ou seja, não precisamos importar a remoção da imunidade que Trump quer impor nos Estados Unidos porque essa imunidade nunca existiu por aqui. Ações das plataformas diretamente sobre o conteúdo são “atos próprios” e não estão cobertos pela regra do artigo 19 do Marco Civil da Internet”.
O advogado Carlos Affonso se refere à “Executive Order25”do presidente americano que busca a revisão da Seção 230 do “Communications Decency Act”, de 1996, em que protege empresas de mídia social da responsabilidade pelo conteúdo postado por seus usuários. Diz a Seção 230 que “Nenhum provedor ou usuário de um serviço de computador interativo será considerado editor ou disseminador de qualquer informação fornecida por outro provedor de conteúdo“. O Presidente Donald Trump pediu a revogação da 230 e assinou a ordem executiva tentando conter proteções às plataformas. O tema já está judicalizado.
A indústria de tecnologia sustenta que a provisão permite que a Internet se desenvolva. De fato, foi a decisão mais acertada em 1996, concebida na era da internet romântica dos anos 90 em que o Netscape Navigator era o browser mais difundido e o Yahoo a ferramenta de busca. Tempos em quem ficávamos maravilhados em abrir uma conta de e-mail com 2MB de capacidade e em que o acesso se dava por rede fixa através de discador com conexão dial-up por meio de fax-modem a velocidades de 56.0/33.6 kbit/s. Gigantes como Google, Facebook, Twitter e Amazon sequer existiam. Smartphone com tela sensível ao toque era coisa de filme de ficção. Streamings em alta definição de videos, games online em rede global e serviços de assinatura de música digital muito menos. Midia sociais não existiam. Apenas salas de bate-papo. A Apple e a Microsoft viriam se reinventar anos mais tarde. Foi em 1996 o ano que JOHN PERRY BARLOW declarou a independência do ciberespaço em Davos, episódio que merecerá uma abordagem ao final deste trabalho. A internet ainda era uma grande teia neutra e colaborativa de circulação de informações e assim deveria ser mantida e protegida. Exatamente 20 anos após aquele 1996 ficaria bem claro que a evolução da intenet caminhou em sentido oposto. As postagens do presidente americano têm gerado muita controvérsia sobre o comportamento especialmente de Twitter e Facebook. Falaremos disso também oportunamente.
A advogada consumerista Flávia Lefrève26, tem visão semelhante ao do CARLOS AFFONSO, Diz ela: “Acho importante destacar que o art. 19, do MCI, ao contrário do que muitos desavisados alardeiam, não impede a responsabilização das plataformas por atos próprios, como por exemplo, pelos seus algoritmos de moderação de conteúdos que têm permitido a veiculação massiva de discursos de ódio e desinformação, ou ainda, atacado a liberdade de expressão com remoções indevidas de conteúdos.” FLÁVIA vai ao ponto importante que merecerá reflexão: algoritmos.
Ocorre, que na prática o que acontece é diverso na medida em que as plataformas usam politicamente do art. 19 do MCI como bula de remédio para não assumir nenhuma responsabilidade sobre suas atividades empresariais nos debates acadêmicos, legislativos e judiciais. Felizmente, o Judiciário está atento. O discurso pronto e fácil da “defesa da liberdade de expressão” merece análises mais técnicas.
Isso fora os aspectos que afetam a vida das pessoas e deixam marcas para sempre. Olhando sobre o aspecto reputacional e psicológico, hoje refletida na absurda cultura do cancelamento de indivíduos, o britânico Jon Ronson narra, em seu best seller “Humilhado”27 como a era da internet mudou o julgamento público e como as mídias sociais facilitam o julgamento alheio, ressuscitando e potencializando a prática de humilhação públicae como funcionam os mecanismos de constrangimento. JON RONSON, conta em seu TED Talk “Quando a espiral de humilhações on-line sai do controle”28 as histórias de Jonah Lehrer e Justine Sacco, que sofreram o julgamento público sumário e impiedoso das mídias sociais.
Para RONSON, “As pessoas poderosas, loucas e cruéis agora somos nós. Parecemos soldados fazendo guerra contra as falhas de outras pessoas, e de repente há uma escalada de hostilidades”. Para ele, “Talvez existam dois tipos de pessoas no mundo: aquelas que preferem os humanos em detrimento da ideologia e aqueles que preferem a ideologia aos humanos. Eu defendo os humanos em relação à ideologia, mas agora os ideólogos estão ganhando, e eles estão criando um palco para constantes dramas artificiais, onde todos são ou um magnífico herói ou um vilão doentio mesmo nós sabendo que nossos companheiros humanos não são assim. A verdade é que somos inteligentes e burros; a verdade é que temos áreas cinzas. O melhor das mídias sociais foi ter dado voz a pessoas sem voz, mas agora estamos criando a sociedade do patrulhamento, em que o melhor jeito de sobreviver é voltar a não ter voz. Não façamos isso”.
Em artigo de 2014 intitulado “Negócio chamado Liberdade de Expressão29”, fora abordado que “criou-se uma nova linguagem marcada por pegadas indeléveis: para a internet, não há passado. Um site de busca volta no tempo e expõe, no presente e em milésimos de segundos, o que dissemos, fizemos e, não raro, do que nos arrependemos.”
A liberdade de expressão e manifestação do pensamento somados a uma imprensa livre e vigilante serão sempre pilares do Estado de Direito. E é no “livrinho” que vamos achar indicativos da responsabilidade necessária. No artigo 5º, IV, reza que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Já no inciso XIV do mesmo artigo, “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”.
É imperioso observar que a vedação ao anonimato não inviabiliza a utilização de pseudônimos, nomes artísticos, nicknames e afins. O que se veda é a impossibilidade de identificação do autor da manifestação livre. O anonimato é necessário em casos de proteção a vitimas, denuncias anônimas e sigilo da fonte jornalística.
O advogado e professor WALTER CAPANEMA em seu ensaio “O Direito ao Anonimato”30, entende que “Não se deve admitir o anonimato como instrumento para a prática de crimes, especialmente os contra a honra, nem para atos que causem danos morais e materiais a terceiros. A proteção à identidade do indivíduo através do anonimato deverá ser consagrada em situações as quais as doações anônimas à caridade e a decorrente de cultos religiosos; denúncias de crimes, especialmente os políticos, grupos de auto-ajuda (Narcóticos Anônimos e Alcoólicos Anônimos, pessoas que sofreram abusos sexuais, pessoas com algum distúrbio ou doença e que não querem revelar a identidade).”
Segundo a Constituição, veda-se a impossibilidade de identificação do responsável pelo que manifestou. Ou seja, quem é o autor da declaração. Nesse sentido, as plataformas devem no Brasil ter condições técnicas de identificação, mesmo que as contas não publicizem a autoria da manifestação livre. Caso contrário, outros valores como a honra, a imagem, a intimidade poderão ser facilmente violados, sob o manto da “livre”, porém irresponsável manifestação. É bom lembrar que o MCI determina a guarda de registros tanto para os provedores de conexão, bem como aos de aplicação como as redes sociais e serviços de mensagem interpessoal entre usuários ou grupos.
Em Habeas Corpus31 de 2004, o Supremo Tribunal Federal já manifestou que “O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o ‘direito à incitação ao racismo’, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica.”
Decisão clássica do Min. CELSO DE MELO32 explica que “O veto constitucional ao anonimato, como se sabe, busca impedir a consumação de abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento, pois, ao exigir-se a identificação de quem se vale dessa extraordinária prerrogativa político-jurídica, essencial à própria configuração do Estado democrático de direito, visa-se, em última análise, a possibilitar que eventuais excessos, derivados da prática do direito à livre expressão, sejam tornados passíveis de responsabilização, “a posteriori”, tanto na esfera civil, quanto no âmbito penal”.
Sendo assim, compete aos detentores de plataformas ter os meios necessários para buscar essa responsabilização posterior, sob pena de servirem de refugio para covardes e criminosos e por isso serem responsabilizados.
1 Em janeiro de 2007, o juiz Ênio Santarelli Zuliani exigiu que as empresas de telefonia bloqueassem o acesso ao YouTube no Brasil, por supostamente descumprir a exigência judicial. O site de vídeos ficou 48 horas fora do ar. Ao perceber a repercussão do caso e pressionado por críticas de que agiria como um censor, Ênio mudou sua decisão e liberou o acesso ao YouTube.
2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm
3 https://www.cert.br/docs/ct-spam/ct-spam-gerencia-porta-25.pdf
4 http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,AA1551523-5598,00-PROJETO+DE+AZEREDO+SOBRE+CRIME+DE+INFORMATICA+E+CRITICADO.html
5 https://oglobo.globo.com/economia/tecnologia/ministerio-projeto-de-controle-da-internet-vai-contra-inclusao-digital-4550641
6 https://tecnologia.uol.com.br/ultnot/2007/05/22/ult4213u98.jhtm
7 https://www.cgi.br/noticia/releases/dilma-rousseff-leva-principios-de-governanca-da-internet-do-cgi-br-a-onu/
8 https://www.ebc.com.br/noticias/politica/galeria/videos/2013/09/integra-do-discurso-de-dilma-rousseff-na-assembleia-da-onu
10 RE 1.037.396/SP, relatado pelo Ministro Dias Toffoli
12https://www.anatel.gov.br/hotsites/Direito_Telecomunicacoes/TextoIntegral/ANE/prt/minicom_19950531_148.pdf
13 https://contadores.cnt.br/legislacoes/portaria-gsipr-no-2-de-8-de-fevereiro-de-2008.html
14 § 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal.
15 Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo. Parágrafo único. A notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido.
16 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12735.htm
17 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12737.htm
18 https://economia.estadao.com.br/blogs/radar-tecnologico/lei-carolina-dieckmann-e-lei-azeredo-entram-em-vigor-hoje-saiba-onde-denunciar/
19 https://www.camara.leg.br/noticias/426573-relator-conclui-leitura-em-plenario-de-parecer-sobre-o-marco-civil-da-internet/
http://www.camara.gov.br/internet/agencia/pdf/MCI_2014_02_12_Relatorio.doc
20 https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/bruno-gagliasso-e-giovanna-ewbank-processam-day-mccarthy.html?gclid=CjwKCAjw88v3BRBFEiwApwLevbFUjcoNVsF7Ke0r0zrH7Ao0DURSsFblwRFYizz2bRaXmuomYDh9mRoC9o0QAvD_BwE
21 http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2015/07/maria-julia-coutinho-maju-e-vitima-de-racismo-no-facebook.html
22 https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2019/11/08/a-constituicao-e-o-artigo-19-do-marco-civil.ghtml
23 https://oglobo.globo.com/opiniao/artigo-liberdade-com-responsabilidade-24128287
24 https://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/05/29/brasil-nao-precisa-importar-nova-regra-de-trump-sobre-redes-sociais/?cmpid=copiaecola
25 https://www.forbes.com/sites/abrambrown/2020/05/28/what-is-section-230-and-why-does-trump-want-to-change-it/#414884ce389d
26 https://flavialefevre.com.br/pt/pl-1429-2020-liberdade-responsabilidade-e-transparencia-na-internet
27 http://g1.globo.com/globo-news/milenio/videos/v/milenio-no-livro-humilhado-jon-ronson-fala-sobre-o-fenomeno-da-humilhacao-online/5189596/
28 https://www.ted.com/talks/jon_ronson_when_online_shaming_goes_too_far?language=pt-br
29 http://www.observatoriodaimprensa.com.br/interesse-publico/_ed785_negocio_chamado_liberdade_de_expressao/
30 https://www.academia.edu/24017280/Artigo_walter_capanema_o_direito_ao_anonimato
31 HC 82.424, Rel. p/ o ac. Min. Presidente Maurício Corrêa, julgamento em 17-9-2003, Plenário, DJ de 19-3-2004
32 MS 24.369-DF. Rel. Min. Celso de Mello.