Paris, 2018. A capital francesa sedia o IGF – Internet Governance Forum, evento anual da ONU sobre a governança da internet. O Presidente Emmanuel Macron deixa atônita a plateia de frequentadores assíduos de eventos internacionais sobre o tema, muitos ainda com sentimentos de uma Belle Époque da internet que há muito já não existia.
Segundo Macron afirmou na abertura do evento, “a Internet é ameaçada por seu conteúdo e os serviços que oferece. A lista de patologias da Internet está ficando cada dia mais longa. (…)
Hoje, quando olho para nossas democracias, a Internet é muito mais bem utilizada por aqueles que estão nos extremos. Ela é usada mais para discursos de ódio ou disseminação de conteúdo terrorista do que por muitos outros. (…) Não podemos simplesmente dizer: somos os defensores da liberdade absoluta em toda parte, porque o conteúdo é necessariamente bom e os serviços reconhecidos por todos. Isso não é mais verdade.” A audiência que Macron inquietou não mudou. É a mesma que Cory Doctorow chama de ativistas pelos Direitos Digitais em seu ensaio “How to destroy Surveillance Capitalism”. Para ele, esse ativismo está onde sempre esteve: olhando para os humanos em um mundo onde a tecnologia está inexoravelmente assumindo o controle.
O presidente anfitrião não pensava apenas nos humanos franceses ou da Comunidade Europeia, mas na Economia Digital que tem como grandes players EUA e China, enquanto a Europa assiste ao jogo no banco de reservas. Nesse dia, ele propôs a proteção dos cidadãos com foco nos dados das pessoas, regulação de conteúdo, segurança cibernética e mais colaboração. Mas a grande mensagem viria da seguinte forma: “Para ser muito politicamente incorreto, estamos vendo dois tipos de Internet emergir: como eu disse anteriormente, existe uma forma californiana de Internet, e uma Internet chinesa. O primeiro é a possibilidade dominante, a de uma Internet impulsionada por atores privados fortes, dominantes e globais, que têm sido partes interessadas impressionantes neste desenvolvimento, que têm grandes qualidades e com as quais trabalhamos, mas que no final das contas não são eleitos democraticamente. Pessoalmente, não quero entregar todas as minhas decisões a eles, e este não é o meu contrato com os cidadãos franceses. Esse é o modelo de autogestão, mas na verdade não tem nenhuma governança e não é democrático. Por outro lado, há um sistema onde os governos têm um papel forte, mas esta é a Internet de estilo chinês: uma Internet onde o governo impulsiona inovações e controle, onde os principais atores da inteligência artificial são detidos pelo governo e há muito … – Eu tenho muito respeito por este modelo, muito respeito. Fazemos muito com a China, mas não temos as mesmas preferências democráticas, não temos as mesmas referências culturais sobre todos os assuntos, não temos a mesma relação com as liberdades individuais – isso é uma realidade. E assim, nessa Internet, o Estado encontrou seu lugar, mas ele é hegemônico.”
Em que pese a eleição de Donald Trump em 2016 e o Brexit de mesmo ano acenderem o alerta da Desglobalização, alguns estudiosos como o holandês Peter Van Bergeijk argumentam que o processo é mais longo, cabendo à desigualdade de renda a grande responsabilidade. Há uma horda de excluídos e que se sentem traídos pelas promessas do mundo globalizado. Excluídos digitais e culturais. O movimento reverso basicamente envolve protecionismo, guerra cambial e comercial, aumento da xenofobia e um desejo de preservação da identidade cultural.
O diretor editorial do Fórum da Nova Economia da Bloomberg, Andrew Browne , afirmou em seu artigo “How the Coronavirus is Accelerating Deglobalization” que a China foi a maior vencedora da globalização, o que, naturalmente, significa que será a maior perdedora da desglobalização. O modelo de Regionalização ganhou notoriedade na pandemia, pois os serviços locais ganharam relevância, assim como as nossas casas: “to be local is the new black”.
A diretora-gerente do FMI, Kristalina Georgieva, chegou a falar em um novo “Muro de Berlim digital” que obrigaria os países a escolher entre sistemas tecnológicos distintos. Já existe, inclusive, uma expressão para isso: “splinternet”. A splinternet é um ideia que remonta 2001, mas que cresceu logo após a Grande Recessão. O estudioso de tecnologia Stephen Lewis identificou o divorcio entre uma internet livre e as pautas dos governos. Ele percebeu que as grandes empresas de tecnologia estariam permeáveis a mexer em seus produtos para se adequarem aos interesses de alguns países estratégicos. Para alguns o modelo de divisão não seria múltiplo, mas binário entre uma internet chinesa e o resto do mundo. Entre eles, o ex-CEO do Google, Eric Smith, que entende que aliados do EUA usariam a mesma rede enquanto outros 70 países da Ásia, África e Europa que têm acordos de infraestrutura pré-existentes com a China adotariam o modelo do país asiático.
O ano de 2020, marcado pela Covid-19, eleições americanas, avanços no antitruste das plataformas transnacionais e guerra comercial entre as duas superpotências do globo será também lembrado pelo “Clean Network”, programa de banimento de aplicações chinesas como TikTok e WeChat. Alias, o site oficial do programa afirma que se trata de uma “abordagem abrangente da Administração Trump para salvaguardar os ativos da nação, incluindo a privacidade dos cidadãos e as informações mais sensíveis das empresas contra invasões agressivas por atores malignos, como o Partido Comunista Chinês.” A empresa ByteDance, dona do app do ano, TikTok, recorreu à Justiça americana e um tribunal federal concedeu liminar que o manteve disponível no país.
Os Estados Unidos e a China estão competindo por inteligência artificial, 5G e muitas outras tecnologias. Vigilância por IA e controle dos cidadãos são temas sobre a mesa. Alguns chamam de nova Guerra Fria e outros até já dizem que estamos de fato em uma Cyber War. Certo mesmo é que existe uma Tech War.
Em entrevista à CNN, Michael Witt, professor sênior de estratégia e negócios da INSEAD Business School disse que “as empresas de tecnologia só agora estão acordando para o fato de que a vida no futuro será muito menos globalizada”. Repetindo a expressão da diretora do FMI, “muro de Berlim virtual” a Eurasia Group escreveu que economias mundiais serão levadas a escolher lados.
Aliado de primeira hora dos EUA, o Reino Unido, já havia decidido pelo banimento da Huawei do seu mercado 5G e deu prazo para que os equipamentos chineses fossem totalmente removidos até 2027 das redes. No último dia 8 de outubro, o Comitê de Defesa do Reino Unido, em seu relatório de segurança defendeu a antecipação da medida até 2025, sob o argumento de “claras evidências” e “provas robustas” de que a fabricante chinesa realmente coopera com o governo chinês. Por meio de um “conluio entre a fabricante e o Partido Comunista Chinês (PCC)”. Mais uma mudança de rumo da decisão de janeiro, no qual a GB havia consentido a permanência da Huawei no mercado britânico limitada a 35%, além da proibição de equipamentos em partes centrais da rede. A Alemanha, adotou o chamado “banimento soft” em que governo alemão opta por dificultar a empresa chinesa ao implementar regulamentações adicionais no processo de habilitação do 5G.
Para Xi Jinping, presidente da República Popular da China, “Nenhum país deveria buscar a ciberhegemonia ou interferir em assuntos internos de outros Estados” como afirmou em 2015 na cidade de Wuzhen. Muitos acusam que a vigilância dos chineses é através dos superapps que fazem de tudo e mais um pouco.
Mas o mundo não é apenas China e EUA. É bom lembrar que a Rússia publicou uma lei que permite a criação de uma infraestrutura que garanta o funcionamento de uma internet russa isolada da internet global e que determina o direcionamento do tráfego da internet russa para servidores que estejam dentro do país.
Na semana que passou, a grande notícia no mundo da tecnologia foi o relatório do Subcomitê Antitruste da Câmara dos Deputados que pediu ao Congresso americano, entre várias recomendações, que promova a separação estrutural das plataformas, inclusive alterando as leis concorrenciais. Isso pode servir no futuro como um modelo para restringir que os produtos chineses e seus superapps sejam reconhecidos em vários países na tentativa de forçá-los à uma segregação.
A Índia passa a ter um papel decisivo em razão de sua força geopolítica e população. Após conflito com a China, baniu o TikTok e mais 58 apps chineses classificados como ameaças em potencial capazes de prejudicar a soberania, a integridade, a defesa ou a segurança do Estado, além da ordem pública. É de lá que vem a Megatele Jio do maior bilionário asiático, Mukesh Ambani. No começo de 2020, Ambani levantou pouco mais de US$ 20 bilhões em quatro meses para a JioPlatforms, uma gigante digital em uma nação igualmente gigante. A JioPlatforms possui um ecossistema de aplicativos de tudo, como compras on-line, streaming de vídeo, transporte, pagamentos, etc. Sua ideia certamente passa pela criação do superapp indiano.
É verdade que a Desglobalização em meio ao coronavirus acelerou a retirada de empresas da China. Os japoneses foram as primeiros. Segundo a Nikkei Asia Review o primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, propôs “construir uma economia menos dependente de um país, a China, para que o país possa evitar melhor as interrupções da cadeia de suprimentos”. No dia do anuncio de retirada japonesa, o diretor do Conselho Econômico Nacional da Casa Branca, Larry Kudlow, afirmou que os EUA também deveriam investir e “pagar os custos da mudança” para retirar as empresas americanas da China.
No BRICs, China, Rússia e Índia se apresentam a seus respectivos meios e modos. O Brasil é um país que apesar do fosso social abraçou a internet desde os seus primeiros passos. É uma potência sob a ótica de usuários/consumidores, mas não está sequer sentada ao lado da Europa no banco de reservas. Liderou importantes discussões, aprovou um marco civil, mas na nova ordem tecnológica ainda busca um espaço. Deveria ser protagonista e não coadjuvante. Atrair empresas estrangeiras que saem da China seria sonho de uma noite de verão para um país democrático? Em algum momento será instado a escolhas, mas deve saber ao menos valorizar seu passe como maior mercado da América Latina.
Para o sociólogo e Mestre em Relações Internacionais pela SAIS Johns Hopkins University, Thiago de Aragão, o BRICS não possui a relevância esperada, mas se tornou uma justificativa para acordos bilaterais de alto nível. Para ele, “a internet brasileira é tratada como bem de consumo e não como indústria e tal postura faz com que o Brasil não desenvolva a teoria de aplicabilidade, mas somente políticas de ampliação de seu uso. Isso acaba por afastar o Brasil das mesas de negociações, mas não deixa de incluir o país na rota de investimentos do setor”. Uma potência agrícola e também tecnológica mais do que um sonho pode orientar como será o nosso futuro digital onde as fronteiras invisíveis parecem erguer muros e fechar portas.
O ativista libertário John Gilmore, fundador da Electronic Frontier Foundation e um dos grandes nomes da história da internet afirmou em 1993 que “A Rede interpreta a censura como um dano e busca um caminho para contorná-lo”. Saudades da Belle Époque.
Excelente! Parabéns, Bechara. Abs, ACF
Como sempre brilhante…abs
Excelente artigo Marcelo.
Como sempre, brilhante.
Abraços
Hélio Costa
Show de artigo! Parabéns!