SOCIEDADE DESCENTRALIZADA PARTE III: Vida Gamificada

Meu primeiro videogame foi o Atari. Lembro do meu irmão e eu fascinados com aqueles jogos primitivos – hoje clássicos, pois contribuíram de alguma maneira para o estabelecimento, a popularização e a evolução do setor de games.

Hoje o crescimento dessa indústria é espantoso. A “brincadeira” ficou séria, virou profissão muito bem remunerada. Somente em 2021 havia 3 bilhões de jogadores em todo o mundo e a indústria gerou centenas de bilhões de dólares em receitas. O e-Sports arrasta uma legião de jogadores e fãs lotando arenas e movimentando fortunas.

A Teoria dos Jogos que desenvolve questões como o Dilema do Prisioneiro ou o Equilíbrio de Nash tenta modelar o comportamento de indivíduos ou grupos como empresários, consumidores e governos que se enfrentam em determinadas situações, considerando que as ações de cada um afetará os resultados que o outro poderá obter.

Ou seja, a tomada de decisão é pura estratégia, pois ao mesmo tempo que se definem escolhas individuais, há uma relação de interdependência com as escolhas dos demais.

O modelo de colaboração descentralizada em um ambiente de estímulo à gamificação pode trazer para o mundo real comportamentos típicos dos gamers: conquistar, superar e vencer… em troca de recompensas!

A expressão gamificação é uma óbvia tropicalização de “gamification”, isto é, a aplicação de técnicas de jogos em situações que não são jogos. Assim, como nos games, identificar e reconhecer a estratégia ideal para cada situação é uma habilidade essencial quando se busca superar os desafios para avançar de fase e alcançar o máximo de benefícios e recompensas.

No mundo da web3 o play-to-earn se mostra uma tendência de retribuir com algo a mais aos gamers. Exemplos disso são os ativos digitais transacionáveis como NFTs ou criptos. O play-to-earn é um modelo de tokenização econômica para games que possibilita players ganharem ativos digitais.

O conceito desse modelo permite que os jogadores produzam receitas comercializando os NFTs dentro do jogo ou ganhando prêmios em criptomoedas, ambas podendo ser trocadas por fiat money. Um dos importantes aspectos é que quanto mais o usuário joga, mais chances tem de ganhar ativos digitais e aumentar o valor dos que já coletou. A medida que mais jogadores entram e desenvolvem o mercado, a geração de valor do jogo amplia para a comunidade e para os desenvolvedores.

E esta é a palavra mágica: comunidade

Os cripto games estão se afastando da mera diversão e avançam rapidamente para a construção de economias digitais robustas. E, por óbvio isso não se restringirá aos jogos eletrônicos. O movimento a ser observado é a construção de comunidades com elementos de gamificação em diversas áreas econômicas e sociais.

Estuturas como as DAOs – Decentralized Autonomous Organizations em que as regras são definidas no sistema blockchain por meio de contratos inteligentes (smart contracts), ou seja, autoexecutável, eliminam esforços de centralização e dá transparência de governança para os usuários participantes do ecossistema, da comunidade. Tokens são usados para essa governança.

Se um game é concebido no modelo de uma DAO, significa que o poder/governança está dentro da comunidade, ou seja, influenciam as decisões significativas da organização, e a direção do jogo será decidida pelos membros da comunidade que têm uma participação na DAO.

Mas, e se concebêssemos uma DAO gamificada? Significa que a comunidade será engajada a buscar o melhor direcionamento para a organização, qualquer que seja o seu propósito.

Partidos políticos, por exemplo, poderiam ser concebidos por uma DAO, garantindo mais participação dos seus afiliados. A inserção de aspectos como participação ranqueada, propostas, metas e outras missões potencializariam os resultados e tornaria o jogo da política mais aberto e atraente. Recentemente vimos a criação de todo um partido político na Dinamarca, o Partido Sintético. Desenvolvida pela ONG MindFuture, a ideia é que a IA possa representar parte da população. No caso de uma DAO gamificada, as decisões ainda seriam de pessoas reais, contudo, se apropriando das técnicas e estruturas dos jogos eletrônicos para tornar a democracia mais envolvente.

O mesmo se aplicaria a qualquer organização descentralizada com elementos de gamificação. Com ferramentas de descentralização e criação de comunidades gamificadas em torno de projetos e marcas, atrelada à acumulação de ativos digitais, essa nova forma de organização poderá ditar não apenas modelos de negócios, mas comportamentos.

E é aqui que a coisa fica mais interessante!

Ao transpor os elementos da gamificação para a sociedade descentralizada, podemos criar grandes projetos, organizações, modelos e estruturas mais transparentes e abertas em que um grupo de pessoas poderá desenvolver ações estimuladas por elementos de engajamento e arquitetura de jogos a fim de solucionar questões de impacto social e ter sua recompensa em uma carteira de ativos digitais conversíveis em dinheiro.

Os riscos são além do aumento dos níveis de ansiedade, a exacerbação da competição e a idolatria da conquista. O acúmulo passa a ser uma obsessão, confundindo-se com o vício e a sociedade certamente deverá lidar com esses e outros desafios. Contudo, comunidades botton-up poderão ser inteiramente concebidas em torno de grandes causas, projetos e construções coletivas.

Os modelos colaborativos poderão proporcionar dentro da comunidade ganhos coletivos. Afinal, uma sociedade engajada em torno de um projeto comum com ganho para todos é a formação de um time único dentro da arena com todo seu potencial. Se o modelo permitir confiança, rastreabilidade e transparência das ações, claro.

É evidente que as novas gerações tendem a uma maior facilidade e aceitação dos desafios, sobretudo as que incorporam novas dinâmicas do mundo dos games.

O mundo poderia com isso canalizar de forma estruturada, desde que com regras claras, ações rastreáveis e imutáveis na grande ledger com possibilidades de trazer finalmente o peer production ou sistema cooperativo como um conceito dos primórdios da web para um modelo mais justo e equitativo que, nos anos 90 não tinha o potencial da descentralização dos dias atuais.

Comunidades engajadas e que sejam remuneradas de forma justa e transparente para suplantação dos grandes desafios que a humanidade precisa encarar são como um grande time com uma mesma missão, conquistando territórios, passando de fase em fase e quem sabe em um futuro não muito distante enfrentando os chefões que ainda precisam ser derrotados: fome, desperdício, desigualdade, corrupção e a destruição do planeta.

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