SOCIEDADE DESCENTRALIZADA PARTE IV TOKENIZAÇÃO DE TUDO

SOCIEDADE DESCENTRALIZADA PARTE IV: TOKENIZAÇÃO DE TUDO

No começo do ano escrevi sobre a tendência que observaria ao longo de 2022, a web3. Natural então meu último texto do ano rever o que de importante aconteceu.

Em 2022, o telescópio espacial James Webb capturou imagens estonteantes de 4,6 bilhões de anos-luz através da visão mais detalhada do Universo até hoje

Segundo a teoria científica mais aceita, há 13,8 bilhões de anos tudo começou com uma grande expansão (não explosão) do núcleo de uma partícula chamada de singularidade ou átomo primordial, com densidade infinita e temperaturas muito altas onde estavam concentradas toda a matéria e energia. A teoria cósmica defende que o Universo está em contínua expansão.

Bem, o ciberespaço também está. Movimento semelhante pode ser observado na rede das redes se olharmos pela perspectiva de bilhões de usuários e coisas conectadas de forma crescente, bem como o número de websites e servidores expandindo não apenas o alcance, mas o volume de informação e extensão de seus impactos.

Tenho defendido que estamos em transformação para uma sociedade descentralizada, tema que quero retornar adiante.

Por ora, convém demonstrar que ao longo deste ano demos passos largos rumo à descentralização. O primeiro deles e mais doloroso foi o “crypto winter”. O mercado cripto encolheu ao menos 1 trilhão de dólares. No começo de 2022, os preços das principais criptomoedas derreteram após o colapso das stablecoins TerraUSD e da LUNA. Os festejados NFTs de 2020 e 2021 caíram significativamente. Muitas exchanges estão enfrentando sérias dificuldades financeiras, incluindo a falência. O ano de 2022 foi terrível para o mundo tech: demissões em massa pelas big techs e derretimento das ações.

Contudo, foi em novembro que a FTX, segunda maior corretora de criptomoedas do mundo, entrou em Chapter 11. Sam Bankman-Fried, ex-CEO e celebridade do mundo cripto foi acusado de fraude podendo amargar 20 anos de prisão. As consequências deste mega colapso ainda estão em curso. O empreendedor foi preso nas Bahamas.

Por aqui, o Faraó do Bitcoin, Glaidson Acácio dos Santos, criador da pirâmide financeira GAS Consultoria, além tentar sair candidato nas eleições nacionais de 2022, foi acusado de assassinatos.

Acredito que as fraudes e golpes que se acumulam nesse mundo são uma parte da dolorosa travessia para a web3

Assim como o estouro da bolha das pontocom em 2000 marcou o final da web1, o inverno cripto poderá ser essencial para a nova transição.

Entretanto, apesar da queda do preço, falências e fraudes uma área que avançou e a que eu mais acredito é a tokenização. Esse é também o pensamento do CEO da BlackRock que diz que a “próxima geração para os mercados” é a tokenization. Falando em um evento do New York Times DealBook, Larry Fink argumentou que a tokenização proporcionará liquidação instantânea e taxas reduzidas.

Tokenizar é um processo em que uma representação digital de um ativo é criada em blockchain, autenticando seu histórico de transação e propriedade. Instituições financeiras tradicionais já trabalham com tokenização de ações, títulos, fundos até arte, bens imobiliários, commodities e patentes.

Segundo relatório do Boston Consulting Group e a ADDX, o faturamento global deve ser de US$ 310 bilhões em 2022 e poderá alcançar US$ 16,1 trilhões até 2030. Até o final dessa década, ativos tokenizados representarão cerca de 10% do PIB global. Observe o gráfico abaixo:

Asset Tokenization Estimates

Eu não tenho dúvidas que um dos primeiros passos para uma sociedade efetivamente descentralizada é a tokenização de tudo

O Banco Central do Brasil no final desse ano criou, por meio da Resolução n.º 273, o Grupo de Trabalho Interdepartamental “GTI Tokenização”para realizar estudo sobre as atividades de registro, custódia, negociação e liquidação de ativos financeiros em infraestruturas de registro distribuído (Distributed Ledger Technologies – DLTs). Além do sandbox e outras iniciativas, o GT vai estudar o impacto do uso das tecnologias DLT/blockchain sobre serviços e estrutura de mercado.

Uma tendência a ser observada pós COP 27 é a tokenização de ativos verdes onde empresas como a Sthorm, uma ESG Tech que cria projetos e impulsiona tecnologias blockchain para impacto social e ambiental, desenvolveu o GreenBook, uma plataforma de geração e comercialização de tokens de conservação de biomas baseados em green bonds utilizando tecnologia blockchain para o armazenamento dos dados e gestão da transparência em todo o processo. A tokenização de biomas pode ser a chave para sua preservação!

Outra tendência que vale ficar de olho é a tokenização da política, o que incluirá desde partidos políticos na forma de Decentralized Autonomous Organizations (DAOs), doações fracionadas, eleições por votos eletrônicos gerando tokens registrados na blockchain e tecnologias que permitirão o cidadão comum influir no processo decisório do mundo político. A evolução desse processo pode nos conduzir a uma Democracia Tokenizada.

O empoderamento de comunidades através dessas tecnologias associadas ao metaverso poderá promover um rearranjo do jogo político favorecendo uma democracia mais participativa e próxima dos cidadãos. A algoritmocracia a que me referia em 2017 passa por uma mudança de eixo gravitacional e sim, será estabelecida em maior ou menor grau de liberdade na legitimação da tecnicidade de governar por algoritmos. O termo “algocracy” surgiria 4 anos no trabalho de A. Aneesh da Stanford University mais ou menos com a mesma visão.

Vitalik Buterin, criador do etherum, criticou o estado da governança na blockchain em seu blog argumentando que os projetos se tornaram excessivamente dependentes do voto por token à medida que tentam se tornar mais descentralizados. Buterin escreveu: “A coisa mais importante que pode ser feita hoje é se afastar da idéia de que a votação por token é a única forma legítima de descentralização da governança. O voto por token é atraente porque se sente credivelmente neutro: qualquer um pode ir e obter algumas unidades da ficha de governança na Uniswap“. Para ele, resumidamente, tokens não fazem uma democracia.

A verdade é que para sabermos onde isso vai dar é necessário que a mais importante transformação aconteça, qual seja, pessoas comuns fazendo uso dessas ferramentas de forma simples, intuitiva e transparente. Muitas vezes sem que saibam o que está rodando por detrás.

Com o uso massivo por todos e consolidada a tokenização de tudo, estaremos de fato diante da possibilidade de descentralização da sociedade.

A internet evoluiu com princípios como compartilhamento, colaboração e sim, descentralização. Ocorre, que com a era das big techs o que observamos é a mudança do eixo de poder migrando muitas vezes do Estado para as plataformas com suas regras que funcionam como leis próprias e empresas que atuam como nações. Poder de mercado + poder informacional = poder demais!!!

A primeira metade do século 20 foi marcada por muitos conflitos. Duas guerras mundiais, uma pandemia de gripe espanhola e o crack da Bolsa de 29 após os loucos anos 20.

A segunda metade, apesar de conflitos pontuais, é lembrada por uma guerra fria entre duas visões e sistemas de mundo. Isso levou a uma corrida armamentista, espacial e tecnológica de onde a internet tem suas origens.

No presente século até 2022 já vivemos conflitos armados, terrorismo, crack da bolsa em 2008 e finalmente a pandemia. As guerras ficaram mais distantes dos campos de batalha com uso de aviões não tripulados e drones, mas sobretudo pelo que alguns chamam de Guerra Cibernética. Eu prefiro falar em Guerra da Informação com acusações de ataques cibernéticos e interferências em processos eleitorais.

Apesar da força relativa da Rússia com legados da antiga URSS, a China é a grande estrela da dualidade com os EUA. As dificuldades enfrentadas na invasão à Ucrânia (outro fato relevante desse ano), mostra uma Rússia menos ameaçadora do que há 60 anos!

Por outro lado, a China que sempre copia, passa a inovar em especial em Inteligência Artificial – IA. A disputa pela hegemonia do 5G é o mais recente capítulo dessa história que está bem longe do fim. Potências como Japão, UK, França e Alemanha ficaram para trás e buscam um reposicionamento que deve esquentar com o 6G.

O mundo ficou mais complexo, redes sociais são acusadas por uns de censura e por outros de fomentar a mentira e o ódio. Processos eleitorais levam mais à divisão da sociedade que união e pacificação. E usamos os mesmos conceitos do século passado para questões políticas com rotulações de direita, esquerda, fascismo ou comunismo.

É bem verdade que as coisas não desaparecem. Mas também é certo que a mudança é uma constante.

E se uma nova forma de entender essa sociedade estivesse na compreensão de que o poder mudou sob todos os aspectos? Se é verdade isso, podemos perceber uma clara fratura exposta naquilo que entendemos como poder central.

E é essa a linha de partida para tentar compreender como o blockchain pode servir de modelo para uma transformação da sociedade rumo à descentralização

Na prática, toda essa evolução tecnológica pode se prestar à vigilância com mais centralização de poder. E nesse particular assim como a URSS era o eixo que representava o comunismo, sistema baseado no controle dos meios de produção, propriedade e planejamento central, a China apresenta sua versão rumo à uma sociedade centralizada!

É de lá que vem o mais avançado Central Bank Digital Currency (CBDC) do planeta. O yuan digital já transacionou mais de US$ 14 bilhões desde 2019. Existem outros projetos pelo mundo e, no Brasil com o próprio Real Digital. Contudo, no caso chinês há uma forte desconfiança de que a moeda associada à IA sirva de instrumento de vigilância.

Essa poderá se tornar uma forma clara de distinção entre os países para além de ideologias dos séculos passados. Nações com índices de liberdades mais acentuadas tenderiam a um modelo descentralizado de sociedade e democracia, enquanto poderemos observar em países totalitários, teocráticos e menos livres um sistema oposto centralizado com proibição a criptomoedas ou sistemas que não sejam controlados pelo Estado.

Por fim, democracias mais fracas de países em desenvolvimento poderão adotar um modelo híbrido em que algumas soluções descentralizadas seriam permitidas e reguladas, enquanto outras seriam proibidas.

“Blockchain na China é a descentralização sob centralização”, disse Jianhai Chen, professor associado da Faculdade de Ciências da Computação da Universidade Zhejiang. “Esta é uma blockchain com características chinesas”.

Ao invés de debaterem descentralização x centralização, a maioria dos educadores se concentra nos aspectos técnicos, na própria programação, que tanto professores quanto estudantes veem como limitantes e contraproducentes.

“Se a educação blockchain na China se concentra apenas em talentos técnicos, você está treinando talentos terceirizados para os EUA”, disse Han Tang, um aluno que abandonou um programa de mestrado em fintechs. Sob esta restrição, Tang acrescentou, a China “não cultivará nenhuma figura de destaque na Web3”. Será? Na minha visão haverá cada vez mais uma Web chinesa.

Para medir uma nação quanto ao seu grau de descentralização/centralização alguns itens precisam ser observados:

  1. Nível de tokenização da Economia;
  2. Descentralização do Poder Público, fazendo uso da blockchain para coletar desejos daquela sociedade;
  3. Descentralização do dinheiro (DeFi, criptos);
  4. Descentralização da propriedade (acesso compartilhado, fracionado); e a
  5. Massificação do acesso à rede (móvel, fixa e satelital).

No ensaio do economista Fred E. Foldvary, “The Completely Decentralized City: The Case for Benefits Based Public Finance” para o The American Journal of Economics and Sociology, o autor defende uma governança da cidade como uma estrutura multinível de baixo para cima baseada em pequenas comunidades de bairro. Para ele, a substituição de impostos e serviços, com financiamento e serviços de nível inferior substituindo as finanças públicas de nível superior, é o processo geral pelo qual se dá a governança descentralizada. As comunidades locais também poderiam se envolver em serviços de crédito e moeda local. Com blockchain isso se torna plenamente possível.

Eu defendo que as soluções para as questões amplamente complexas do Sec. 21 não serão respondidas pelas teses do século passado. Existem algumas diferenças claras:

SECULO XXSECULO XXI
CRÉDITOREPUTAÇÃO
PUBLICIDADE DE MASSACONSTRUÇÃO DE COMUNIDADE
PROPRIEDADE PRIVADACOMPARTILHAMENTO
HIPERCONSUMOCONSUMO CONSCIENTE
DESPERDICIOECONOMIA CIRCULAR
LUCROLUCRO + IMPACTO
CAPITALISMOCAPITALISMO CONSCIENTE
GERAR VALOR AOS SÓCIOS/ACIONISTASGERAR VALOR PARA A COMUNIDADE
RESPONSABILIDADE SOCIALESG

Em quaisquer dos modelos, centralizado ou descentralizado, governos não reagirão bem. Não que regulações não sejam importantes a exemplo do PL 4.401/2021 que traz diretrizes para a “prestação de serviços de ativos virtuais” e regulamenta o funcionamento das empresas prestadoras desses serviços, aprovado esse ano. O que se teme é o excesso regulatório ou vedações a novas possibilidades de negócios.

Dentre todas, sem dúvidas a criação de comunidades é que terá grande impacto na sociedade descentralizada. O empoderamento de indivíduos a partir de soluções baseadas em web3 ampliará ainda mais a criação de comunidades e o conjunto delas será a base da sociedade descentralizadas. Conceitos como Minimum Viable Community (MVC) ou, em resumo, a congregação do menor grupo de pessoas para um propósito comum de criar uma comunidade será parte do mundo dos negócios e da política.

Afinal, a construção de um senso comum de confiança, propósito e comunidade, com transparência, rastreabilidade, gamificação, incentivo e remuneração automatizada pelo desempenho e contratos públicos inteligentes serão a tônica de conjuntos de comunidades que integrarão a sociedade descentralizada.

Cada comunidade nova é um astro dentro do universo em expansão da rede e provoca reações. A descentralização é uma real possibilidade de gerar valor em novos ativos, mas também de empoderamento do cidadão. Por outro lado, nem tudo são flores. Sua antítese servirá de controle e vigilância.

Se é verdade que veremos uma desglobalização da internet, a participação social é fundamental no momento de construção dos arcabouços legais e regulatórios que em última medida ditarão como será o mundo em que viveremos.

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