Eu que já fui algumas vezes ao mais belo evento popular do país, o Festival Folclórico de Parintins, gosto das lendas amazônicas. Há uma entre os povos Tukano, do Alto Rio Negro, que fala do tempo em que a Terra adoeceu.
A floresta, envenenada por um rio que havia sido esquecido pelos homens, parou de cantar. Os peixes sumiram. Os pássaros não migraram. O céu não respondia aos cânticos. Foi então que um velho xamã, em silêncio, lembrou aos mais jovens de onde vinham suas palavras. Não das bocas — mas dos sonhos.
E nos sonhos ele reencontrou a cura: não estava nas armas, nem no grito, mas na água limpa, na escuta dos ciclos, na reconexão. Ao refazer o caminho de volta à nascente, os homens curaram o rio — e foram curados com ele.
O futuro não será uma linha reta de avanço
Essa lenda não é apenas pura poesia. É diagnóstico e prescrição. O que os povos originários sabiam (e sabem) por instinto é o que a modernidade digital desenfreada a lembrar: o futuro não será uma linha reta de avanço, mas um traçado sem definição clara, mas que visita o retorno.
Vivemos hoje em um mundo saturado por excesso e abundância: que se orgulha do ilimitado sem limites e de excesso de dados, de estímulos, de pressa, de interfaces, de performance. O ser real substituído por camadas de filtros tão artificiais que escondem nossa alma.
A hiperatividade digital tornou-se nossa linguagem e também nossa doença. A internet, que prometia conexão, frequentemente entrega dispersão, esgotamento e desumanização. Tudo isso gera um paradoxo: nunca se produziu tanto conteúdo e nunca estivemos tão entediados. As promessas do digital ilimitado escondem a miséria de uma experiência que muitas vezes se resume a preencher vazios com vazio.
Mas como em todo ciclo extremo, a saturação produz antídoto. O colapso da atenção e da saúde mental está produzindo uma resposta orgânica, irreversível: o bem-estar está deixando de ser uma escolha e se tornando uma exigência. Nas pessoas. Nas empresas. No planeta.
As críticas a chamada geração Z precisam ser revisitadas. Parece que esses jovens sinalizam que algo não está bem. E quem poderia julgar? Afinal se consideramos uma pessoa de vinte e poucos anos sua existência é baseada em crises econômicas, morais e instabilidades.
O wellness do futuro
O wellness do futuro não será apenas autocuidado: será critério de pertencimento social, imperativo organizacional e reconexão espiritual com a vida. O nosso planeta é uma estrutura sistêmica complexa e poderosa cheia de beleza, força e fragilidade ao mesmo tempo. A pandemia mostrou isso. Cada um de nós não é muito diferente. Corpo, mente e espírito se entrelaçam e o ser humano parece gritar por mais silêncio.
Não bastará mais vender, será preciso regenerar. Marcas que não cuidarem das pessoas serão abandonadas. Não basta responsabilidade social ou ESG, mas soluções para problemas como saúde e educação deixarão de ser assuntos de governos e serão de brand. As soluções do século passado não passam perto das necessidades das complexidades atuais.
Plataformas que causarem ansiedade crônica e automacao das relações serão desinstaladas ou mantidas para interação de bots. Novas surgirão com modelos mais humanos. Ambientes de trabalho que ignorarem o cansaço coletivo se tornarão insustentáveis. Empresas investem em gestão da felicidade.
O bem-estar se tornará a infraestrutura oculta da inovação. E a tecnologia — que antes acelerava o caos — será forçada a desacelerar com propósito. Desconectar digitalmente será a nova forma de conectar-se com o outro e com o planeta. Shows e festas sem celulares. Chega de ver por vídeos que serão postados em perfis com conteúdos efêmeros que desaparecem em 24hs! Viver e sentir o momento passa a ter relevância.
A busca é pela imersão na realidade
Importante dizer: não há incoerência alguma nisso. A própria tecnologia será fundamental para viabilizar esse novo ciclo de bem-estar — desde que reprogramada, redesenhada e reumanizada. Não se trata de rejeitar o digital, mas de dar a ele um novo código de valores. O que está em jogo é uma transição: da tecnologia que nos consome, para a tecnologia que nos cuida.
Essa virada já tem fundamento técnico. A ancestralidade da própria internet, aquela da Web 1.0, era baseada em conexões livres, diretas, horizontais. E é esse espírito que retorna agora em novos formatos, sob o nome de Web 3.0: um modelo descentralizado, em que a confiança se ancora novamente nas pessoas, nas redes humanas, e não apenas nos intermediários algorítmicos.
Essa travessia é natural. A automação acelerada da inteligência artificial, ao contrário de apenas substituir humanos, está abrindo espaço para reflexões éticas, espirituais, existenciais e filosóficas profundas. E dessa introspecção, nascerão novos direitos, novas fronteiras da dignidade, novas ideias de liberdade. Uma separação clara entre digital e real que nasce da transparência mais evolui para autodeterminação, livre arbítrio e independência são fáceis de se prever.
Yochai Benkler antecipou que só sistemas descentralizados sustentam sociedades livres e cooperativas. A lógica da dispersão algorítmica está esgotada. Esse modelo nos arrasta para o colapso da atenção. Não há começo, meio e fim. Há apenas fluxo. Inteligências artificiais que imitam relações humanas não suprem o vazio da falta de presença real. E por isso, vemos nascer uma nova ética: a da convivência intencional.
Essa ética apareceu também no palco do último Festival de Coachella, na Califórnia, onde o DJ e artista brasileiro, Alok, rejeitou o espetáculo puramente digital e optou por uma apresentação baseada em arte humana. Dançarinos e corpos reais ocuparam a cena — não para nostálgicos, mas para o futuro. Foi uma performance que dizia sem dizer: o humano não é obsoleto — ele é essencial.
O Futuro Ancestral
E o produtor Alok nomeia isso com clareza em sua obra: o futuro é ancestral. Não por modismo, mas porque tudo o que nos cura já esteve conosco. E voltará. Futuro Ancestral é um livro do ambientalista, filósofo e líder indígena brasileiro Ailton Krenak.
“Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui”, diz ele.
O Brasil carrega a potência desse novo mundo. Não porque somos “o país do futuro” tão prometido, mas porque somos a terra das origens. A biodiversidade será tão ou mais valiosa que o petróleo. Como diz Nathanial Matthews, CEO da PlanetaryX que usa tecnologia e descentralização como o blockchain para transformar serviços ecossistêmicos e biodiversidade em ativos digitais, “o nosso futuro depende de ressarcir a natureza”.
Nossa ancestralidade indígena e negra guarda modelos de vida baseados em equilíbrio, cuidado e comunhão. Somos feitos de roda, de partilha, de oralidade, de comunidade. Nosso DNA carrega códigos de sobrevivência e alegria, resistência e festa, sabedoria e adaptação.
A próxima internet, se quiser ser habitável, terá de beber dessa fonte. Terá de ser regenerativa, não extrativista. Conectiva, não manipuladora. Contemplativa, não apenas responsiva. A tecnologia do futuro não será invisível, mas respeitosa. E terá de voltar a ser colaborativa. E o novo luxo será o tempo, a paz, o vínculo.
O futuro será sim mais wellness, não por capricho, mas por necessidade. Não apenas do nosso corpo, mas do nosso mundo. E será ancestral não por nostalgia, mas por evolução.