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A Internet Morta e a IA Viva

Pessoalmente, não sou adepto de teorias da conspiração, mas vou recorrer a uma específica de meados da década passada e, que de uns tempos para cá, voltou a ganhar destaque nas redes: the Dead Internet Theory.

A Teoria da Internet Morta basicamente advoga que a maior parte da internet, especialmente as interações em redes sociais e fóruns, é controlada por bots e conteúdo gerado de forma automática, em vez de resultar de interações humanas autênticas.

O conceito foi concebido, amplamente debatido e aprimorado de forma colaborativa ao longo dos anos. No entanto, somente em 2021 a Teoria ganhou tração, quando um usuário anônimo, conhecido como IlluminatiPirate, publicou um texto intitulado Teoria da Morte da Internet: A Maior Parte da Internet É Falsa no fórum Agora Road’s Macintosh Cafe.

Defensores dessa ideia argumentam que a quantidade de conteúdo “verdadeiro” na internet teria diminuído drasticamente após um evento indefinido entre os anos de 2016 e 2017, período em que as grandes plataformas teriam assumido o controle do ambiente digital.

Contudo, fatores como o amplo uso de bots e inteligência artificial, o desaparecimento de pequenas comunidades e fóruns – pilares da internet nos anos 2000 – e o surgimento das grandes redes sociais, que promovem interações menos autênticas, reforçam a percepção de uma profunda transformação na internet. O que antes era um espaço voltado à criatividade e à interação humana tornou-se, em grande medida, numa ferramenta automatizada, projetada para manipulação e consumo desenfreado.

Para os teóricos, esses anos representam um possível ponto de inflexão, dado que vários episódios contribuíram para o aumento da percepção de uma internet mais automatizada, centralizada e controlada. A IA generativa, a automação em massa, as mudanças nos algoritmos das redes sociais (engajamento acima de tudo), a priorização de conteúdos de criadores corporativos e de influenciadores em detrimento de usuários comuns e, por fim, a manipulação das eleições de 2016, o Brexit e o caso da Cambridge Analytica, são exemplos emblemáticos.

Algumas interpretações mais radicais da Teoria sugerem que governos ou grandes corporações estariam interessados em estabelecer uma “internet falsa”, com o objetivo de influenciar a opinião pública, disseminar ideologias ou impulsionar o consumo de seus próprios produtos e anunciantes.

Assim, o conteúdo produzido por usuários reais seria substituído por um fluxo contínuo de publicações automatizadas, notícias falsas e algoritmos que priorizam certos tipos de teor. Esses algoritmos das grandes plataformas favoreceriam conteúdo automatizado ou com grande potencial de engajamento, criando uma visão distorcida da realidade.

Embora os algoritmos influenciem de fato nosso consumo e comportamento, com efeitos deletérios especialmente em crianças e adolescentes, a quantidade de conteúdo gerado por usuários reais ainda é significativa e não deve ser subestimada.

Muitos como eu consideram essa Teoria conspiracionista. Contudo ela consegue refletir preocupações legítimas sobre a autenticidade das interações virtuais, o impacto das tecnologias emergentes e o papel das grandes plataformas digitais na configuração da experiência na internet. É, sem dúvida, um reflexo da decepção de muitos com a internet atual e da complexidade em diferenciar entre o que é real do que é falso no universo digital. E isso tende a aumentar!

Ainda que dados indiquem que, em 2023, os bots representaram quase metade (49,6%) de todo o tráfego da internet – um aumento de 2% em relação ao ano anterior e o nível mais alto registrado pela Imperva desde que começou a rastrear o tráfego automatizado, em 2013,eo tráfego de usuários humanos tenha caído para 50,4% em 2023, não existem evidências de que a internet seja “controlada” por bots ou que tenha ocorrido uma queda considerável no conteúdo humano capaz de justificar sua suposta morte, mesmo com tudo indicando que 2024 foi ano que fomos superados.

Com a crescente desumanização da internet e um ambiente cada vez mais artificial, o conteúdo vem sendo, com frequência, elaborado para iludir ou manipular.

E os golpes estão aí. Cai quem quer e quem não quer. Os mais recorrentes incluem a criação de avatares falsos em redes sociais, relacionamentos amorosos fraudulentos, esquemas de investimentos financeiros enganosos, fraude autoral e a produção de conteúdo pornográfico manipulado.

O velho “golpe do amor” característico das redes sociais e apps de relacionamento agora está anabolizado por IA. Já o recente episódio visto em Honk Kong em que fraudadores fizeram uso de deepfake para manipular vídeos e imagens disponíveis publicamente está se tornando cada vez mais comum.

Golpes de transferência em dinheiro para supostos parentes por aplicativos já começam a mostrar os primeiros sinais de uso de voz e imagens sintéticas. O FBI vem advertindo sobre os golpes recomendando que as pessoas utilizem códigos pessoais como palavras-chaves para confirmar que estão tratando com humanos, bem como para identificar a identidade de parentes e amigos.

A criação também começa a ser automatizada. Influencers e creators totalmente artificiais já faturam receitas publicitarias como a Aitana Lopez ou a Emily Pellegrini. Perfeitas representações de bits, não estão sujeitas aos vícios de seres de carne e osso. O mercado de influência, atualmente em crise de credibilidade, e mais em evidência nas páginas policiais do que nos conteúdos online e podcasts cede espaço para personalidades virtuais.

No jornalismo, segundo o News Guard, existem pelo menos 1.150 sites de notícias geradas por IA não confiáveis.

Esses falsos “veículos de notícias” criados inteiramente por IA, sem jornalistas, roubam conteúdo jornalístico profissional feito por humanos e parafraseiam as notícias de maneira a evitar o plágio e sem qualquer respeito autoral, ao mesmo tempo em que contribuem para a disseminação validação de desinformação.

A adoção da Inteligência Artificial na produção de conteúdo automatizado impacta significativamente o campo criativo. A Lei dos Direitos de Autor brasileira estabelece que obras intelectuais são uma criação do espírito humano,, coisa que máquina alguma possui. E, embora as ferramentas de IA possam ser percebidas como parceiras que ampliam as oportunidades criativas, elas também podem gerar riscos de uniformização cultural e criações padronizadas baseadas em dados preexistentes ao invés de experiências humanas autênticas.

Já há até quem aponte déficit cognitivo com o uso dessas ferramentas que resolvem tudo por nós (abordei a comoditização da resposta no meu último artigo sobre IA: “Seu desejo é uma ordem”). Já os assistentes virtuais pessoais baseados em IA ou AI agents falarão conosco, por nós e entre si. A lógica de tempo, espaço e escassez da Revolução Industrial vilipendiadas pela rede digital sem fronteiras e sua abundância terá na automação criativa uma explosão de atividades simultâneas com a multiplicação de “eus” – por vezes vazios, opacos.

Assim, morre a internet humana e a teoria se confirma? Para mim, a resposta é não! Ela se transforma.

Quem é da área de comunicação conhece bem essa história. Cinema, rádio e televisão: mortes decretadas tantas vezes. Ainda assim, sempre encontraram formas de se transformar e evoluir.

No campo especulativo, quais seriam nossas opções? Será que nós, humanos, passaríamos a ter um papel mais passivo, tornando-nos predominantemente consumidores em vez de criadores, invertendo a lógica do proconsumidor na user content generation? Ou como nós podemos preservar o nosso papel criativo e ativo em um mundo onde as máquinas são cada vez mais responsáveis pelo conteúdo? A rede vai ser mais um ambiente de simulação do que expressão?

Como estudioso da sociedade descentralizada, acredito no aumento da desconfiança em relação a algumas grandes plataformas e na aceleração da Web 3.0 como um movimento que busca às origens da Internet. Nessa perspectiva, as grandes redes sociais poderiam ser substituídas por redes locais ou privadas menores e descentralizadas, baseadas em blockchain, capazes de assegurar a veracidade das interações e descentralizar a gestão de informações.

Assim, os usuários teriam maior controle sobre seus dados, utilizando-os como moeda de negociação de forma transparente, imutável e rastreável. Essa autonomia ampliaria a independência dos indivíduos, embora o acesso possa se tornar mais restrito e menos abrangente. Redes sociais menores, mais íntimas e personalizáveis poderiam substituir as grandes plataformas, priorizando a qualidade das interações em vez da quantidade.

A ascensão de plataformas descentralizadas que prometem devolver aos usuários total propriedade sobre seus dados e interações, como o Bluesky, que utiliza o Protocolo AT (Authenticated Transfer Protocol), reflete um desejo por maior privacidade, transparência e autonomia digital.

Nesse contexto, o Protocolo AT se diferencia por possibilitar que os usuários possam migrar suas contas entre servidores sem perder dados ou conexões, promovendo portabilidade, transparência e controle individual.

Além disso, o Protocolo AT possui uma arquitetura open source, a mesma adotada pela grande surpresa tech chinesa de 2025 DeepSeek, o que significa que qualquer desenvolvedor pode contribuir para a sua evolução, promovendo inovação constante.

Em meio da internet robótica, ilhas de Aplicações Descentralizadas (DApps) poderiam existir, empregando mecanismos para garantir ambientes 100% human certified. Assim, a Identidade Auto-Soberana ou Self-Sovereign Identity (SSI) tende a ganhar musculatura como mecanismo de validação da identidade do indivíduo.

Estou certo de que a “Internet Humana” pode ser resgatada com comunidades remodeladas que priorizam a colaboração, a empatia e a genuína criatividade. Nesse sentido, a educação digital se torna ainda mais essencial para capacitar os usuários a navegarem em um ambiente onde o ser humano é o foco.

O futuro da internet está no empoderamento do usuário humano, como o senhor do seu destino digital

Na prática, o usuário pessoa é quem detém uma ampla margem de escolhas a partir da propriedade de suas informações, o que inclui seus dados pessoais, especialmente sensíveis, seus seguidores e ativos digitais que transitarão consigo entre plataformas de modo portátil e interoperável.

Espaços free bots serão criados dentro da rede, incentivando as pessoas a redescobrirem formas de criação e conexão no mundo offline, como arte, música, cinema, poesia ou projetos colaborativos presenciais. A humanização como resgate das relações interpessoais será ainda mais explorada nas escolas e a desconexão digital e eventos ao ar livre e próximos à natureza certamente se intensificarão.

A proliferação de notícias artificiais sem checagem, apuração e de fontes duvidosas tendem a fortalecer o jornalismo humano revigorando os veículos profissionais que fazem cobertura dos fatos e eventos de forma real e com método. Essa tendência de busca pela informação correta também deve ser observada com a ampliação de moderações automatizadas.

John Gilmore, pioneiro da internet e cofundador da Electronic Frontier Foundation (EFF), afirmou em 1993, durante uma entrevista que “a Internet interpreta a censura como um dano e se reconfigura para evitá-lo”. Na época, Gilmore defendia a então Web 1.0 e promovia o uso de rotas alternativas aos bloqueios a exemplo do que promovem as redes privadas VPNs, proxies e redes descentralizadas como o Tor.

Hoje, o avanço da robotização nos aponta para um possível resgate daquela internet mais humana, agora materializado na visão da Web 3.0, onde o poder centralizado por plataformas e algoritmos de recomendação que nos moldam e nos definem volta aos seus legítimos donos. Vamos conviver com conceitos como “transparência algorítmica”, “desalgoritimização”, “reset de feed”, “fediverse”, “rotulação de bot” e “IRL (in real life)”.

Uma coisa é certa: humanos são, por natureza, destinados a se conectar com outros humanos, seja dentro ou fora da rede.

Se máquinas podem criar, e certamente um dia terão autoconsciência ou autopercepção, se comunicarão e construirão comunidades e culturas próprias, talvez a pergunta implícita seja: o que nos torna humanos?

Talvez a resposta esteja na busca por um sentido, um significado, um propósito – na crença, independente de sua forma, de que possuímos autonomia sobre nosso próprio destino. Para alguns, esse destino é pré-determinado, algo já escrito. Para outros, é uma escolha. Para muitos, é uma construção contínua, moldada por nossas próprias experiências, aspirações e decisões.

E quem sabe não seja o nosso destino uma nova rota? Assim, a Internet percebe a robotização como uma ameaça e se adapta para preservar sua essência humana. A reconfiguração de Gilmore está em curso!

Marcelo Bechara

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